A promoção dos direitos econômicos das mulheres, incluindo o acesso a emprego e a condições de trabalho adequadas, tem sido um aspecto prioritário das agendas internacionais de desenvolvimento há quase cinco décadas. No entanto, o mundo falhou em antecipar e prevenir os efeitos desproporcionais que a recente crise da pandemia de COVID-19 teve sobre a igualdade de gênero no mundo do trabalho, na participação laboral e no emprego das mulheres; efeitos que têm sido amplamente documentados, embora possivelmente não totalmente explorados.
Neste texto, compartilhamos a história de Janet para refletir sobre como a distribuição desproporcional de tarefas de cuidado durante a pandemia retardou o avanço na carreira de uma mulher que já havia superado várias barreiras de acesso ao mercado de trabalho. Também destacamos como o Banco Interamericano de desenvolvimento (BID) tem contribuído para evitar esses retrocessos e promover a igualdade.
Barreira estrutural leva à saída do mundo do trabalho
No final de 2022, Janet, uma mulher de origem centro-americana, decidiu deixar o emprego em uma empresa privada do setor de logística e transporte. Após mais de 20 anos de uma carreira bem-sucedida e ascendente em uma multinacional, o peso das circunstâncias familiares e os efeitos da pandemia a levaram a dar uma pausa em sua carreira profissional.
De acordo com várias estatísticas, Janet era uma “exceção”: formada em uma das áreas STEM (Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática), ela atuava em um setor com presença predominante de homens – ou seja, com os mais altos graus de segregação ocupacional – e ainda liderava uma empresa desta área fora do seu país, no sul do continente. Estima-se que as mulheres representem 35% das pessoas que estudam carreiras STEM e ocupem apenas 21% dos cargos de liderança no setor de logística e transporte no mundo.
Mesmo assim, Janet, assim como muitas outras mulheres, enfrentou o desafio de conciliar o trabalho remunerado com o cuidado e as tarefas domésticas. Ela não esbarrou no conhecido “teto de vidro“, mas em uma realidade que, no contexto da emergência sanitária, impôs um fardo avassalador que destruiu os equilíbrios alcançados entre seu espaço familiar e o desempenho de uma posição profissional altamente exigente.
Foi uma loucura administrar uma empresa em um setor em crise em plena pandemia: reuniões virtuais na cozinha, segurando o celular sem as mãos, enquanto preparava a comida e meninas escalavam as paredes porque não podiam nem sair para brincar no parque”, lembra.
Durante a pandemia, só nos Estados Unidos, uma em cada quatro mulheres considerou deixar a força de trabalho ou reduzir seu nível hierárquico, em contraste com um em cada cinco homens. As mulheres mais acometidas foram aquelas com filhos e, principalmente, aquelas com filhos menores de 10 anos. Na América Latina e Caribe, estudos para Brasil, Chile, México e República Dominicana confirmam maiores impactos negativos sobre a oferta de trabalho para mulheres em domicílios com crianças em idade escolar.
Janet estava duplamente no grupo de alto impacto.
É uma pena. A pandemia reverteu a paridade que havia sido alcançada entre homens e mulheres em cargos de gestão na minha empresa”, diz ela.
Trajetórias de trabalho mais vulneráveis para as mulheres
A experiência e a percepção de Janet captam um fenômeno mais complexo de freios, retrocessos e mudanças na participação e inserção laboral das mulheres, não só na América Latina e no Caribe como no mundo. Entre 2019 e 2020, a ligeira melhora observada no indicador dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) para a proporção de mulheres em cargos gerenciais estagnou pela primeira vez em quase uma década. A partir de 2020, a redução do Índice de Paridade de Gênero na força de trabalho acelerou, chegando, em 2022, ao menor valor (62,9%) desde a sua primeira publicação, em 2006. No final de 2021, a América Latina e o Caribe ainda apresentavam um cenário altamente heterogêneo de recuperação da participação laboral das mulheres, com países que igualaram ou até superaram os níveis desse indicador em relação à situação anterior à pandemia e outros que estão atrasados em sua evolução.
A recuperação dos empregos na região também foi heterogênea e mostrou diferenças significativas de gênero: mais lenta e atrasada para as mulheres durante os dois primeiros anos da pandemia; mais dinâmica que a dos homens a partir do segundo semestre de 2022; e com desaceleração do crescimento para ambos em 2023, segundo estimativas do Observatório do Trabalho do BID.
A retirada temporária ou permanente das mulheres da força de trabalho tem várias implicações que transcendem os efeitos observáveis da pandemia sobre os números de empregos perdidos ou recuperados. As mulheres navegam nos mercados de trabalho de forma diferente dos homens e tendem a ter percursos profissionais mais vulneráveis. No momento, sabemos apenas que a pandemia evidenciou essas vulnerabilidades, mas não sabemos a magnitude do impacto na qualidade dessas trajetórias. A pandemia também mudou a explicação das transições de e para a força de trabalho, que refletem diferentes histórias pessoais, como a de Janet, que optou por parar temporariamente, antes de entrar em colapso.
Em um cenário de ajustes pós-pandemia e de alta incerteza causada por outras crises de natureza política e econômica no mundo, as respostas para promover a igualdade das mulheres no mercado de trabalho não podem ser marginais, unidimensionais ou circunstanciais. Pelo contrário, devem reconhecer que são necessárias mudanças profundas em áreas inter-relacionadas com o funcionamento dos mercados de trabalho, incluindo o domicílio, os serviços de prestação de cuidados, o sistema educativo e o ambiente mais amplo de elaboração de políticas.
Mãos à obra para alcançar a igualdade de gênero
No BID, trabalhamos para restaurar, cuidar e estabilizar o emprego das mulheres na América Latina e no Caribe, adicionando à nossa agenda de desenvolvimento um Quadro de Ação sobre Emprego com Perspectiva de Gênero e outras iniciativas para avançar na identificação e erradicação das lacunas que afetam a participação das mulheres no mundo do trabalho e, dessa forma, contribuir para uma recuperação mais justa e sustentável do emprego para todos.
Compartilhamos abaixo três das apostas que estamos promovendo a partir de nossas operações e ações:
1: Promover a corresponsabilidade nas tarefas de cuidado
Na América Latina e no Caribe, prevalecem normas sociais que condicionam as expectativas sobre os papéis e o comportamento de homens e mulheres, bem como as oportunidades a que ambos têm acesso.
Assim, a atribuição de papéis associados às tarefas domésticas e de cuidado ainda constitui, no século XXI, uma barreira estrutural e objetiva ao desenvolvimento das mulheres, e continua a ser um fator associado a outras desigualdades nos mercados de trabalho, como a persistência de lacunas de participação no trabalho, o número de horas dedicadas ao trabalho produtivo, a qualidade do emprego – e, consequentemente, menores níveis de renda do trabalho, menores chances de acesso a uma pensão e maior probabilidade de enfrentar a pobreza na velhice.
22 em cada 100 adolescentes e jovens adultas dedicariam exclusivamente aos afazeres domésticos e aos cuidados, em contraste com 10% dos homens na mesma faixa etária
As transformações na regulação são fundamentais para modificar essas normas sociais e gerar incentivos para maior corresponsabilidade e melhor redistribuição das tarefas de cuidado dentro e fora de casa:
- Licença-paternidade generalizada na região,
- Envolvimento dos setores público e privado na articulação de soluções e na prestação de serviços de acolhimento para crianças.
Os serviços de cuidados infantis podem fazer a diferença e estão ligados à maior participação feminina na força de trabalho, tanto em países desenvolvidos quanto em desenvolvimento. Por isso, continuam a ser uma das políticas mais eficazes para promover a igualdade no acesso aos mercados de trabalho. No entanto, devem ser acompanhadas pelos sistemas nacionais de cuidados, que, como eixos de sistemas de proteção social mais amplos, fornecem serviços acessíveis, culturalmente apropriados e de qualidade à população ao longo de todo o ciclo de vida.
A América Latina e o Caribe tornaram-se a região do mundo em que o envelhecimento da população ocorre de forma mais rápida. Isso significa que, a curto ou médio prazos, serão necessários esforços de cuidado tanto de menores como de idosos em situação de dependência. Contudo, poucos países da região conseguiram implementar sistemas de atenção integral na prática. Isso implica que, se a distribuição dos papéis de cuidado não for alterada, essas funções, muitas vezes não remuneradas, continuarão a recair predominantemente sobre as mulheres, limitando seu pleno desenvolvimento e reproduzindo os fatores de desigualdade nos mercados de trabalho.
A pandemia de COVID-19 levou a um debate renovado sobre a importância dos sistemas nacionais de cuidados. A grande tarefa que temos pela frente é conceber e implementar estes sistemas em escala, assegurar que sua resposta seja eficaz tanto em circunstâncias normais como em tempos de crise e garantir os direitos não só de quem precisa de cuidados, mas também de quem cuida.
2: Desenvolver estrategicamente o talento feminino
Os mercados de trabalho mundiais estão mudando em um ritmo cada vez mais acelerado. A crise sanitária evidenciou a rapidez com que as tecnologias de informação facilitaram a instalação do teletrabalho, com suas vantagens e desvantagens. Várias tendências estão transformando o mundo do trabalho: a transição demográfica, as mudanças climáticas e a transição para economias verdes, bem como os avanços tecnológicos são algumas delas. Todas têm um denominador comum: exigem novas habilidades da força de trabalho.
Nesse contexto, as disciplinas STEM tornam-se cada vez mais relevantes para formar os perfis e habilidades necessárias para acompanhar essas tendências e mudanças, tais como:
- Perfis médicos, de saúde e de pesquisa científica para enfrentar uma população cada vez mais envelhecida;
- Profissionais de engenharia com habilidades de trabalho verde que possam propor alternativas de descarbonização energética;
- Profissionais e quadros técnicos com competências digitais para desenvolver o potencial da automação, transformação digital e inteligência artificial (IA) na produção de bens e serviços e na dinamização de economias.
Desenvolver as habilidades das mulheres de forma oportuna e estratégica diante destas transformações é crucial para garantir que sejam capazes de entrar nos mercados de trabalho de forma mais competitiva. No entanto, as mulheres continuam sub-representadas nestas disciplinas e áreas ocupacionais, que também tendem a ser as mais bem remuneradas e oferecer empregos de maior qualidade. Isso explica, em parte, as diferenças nos níveis de renda ao longo da vida profissional.
O desenvolvimento dessas habilidades envolve mudanças nas escolas que vão além da paridade numérica em sala de aula ou das conquistas medidas pelos anos de escolaridade alcançados, incluindo também questões de conteúdo, redução de vieses e eliminação de estereótipos presentes nos sistemas educacionais, além de incentivos para que mais mulheres optem por carreiras STEM e sejam modelos para outras gerações de meninas.
Ativar trajetórias educacionais e de desenvolvimento precoces que envolvam meninas, adolescentes e jovens mulheres na resolução de problemas complexos e emergentes, posicioná-las em ocupações com melhores retornos e ampliar suas oportunidades de participação e tomada de decisões, tanto no espaço público quanto no privado, é fator fundamental para avançar em direção à igualdade no mundo do trabalho.
A IA se alimenta de fontes de informação que refletem tanto os valores predominantes quanto a dinâmica de poder.
3: Melhorar dados e evidências para informar práticas e políticas a favor da igualdade
É difícil conceber que, em um mundo cada vez mais conectado, com mais acesso às tecnologias de informação e comunicação e com volumes significativos de dados gerados em tempo real, ainda existam lacunas em dados e informações para tornar visíveis os desafios de desenvolvimento enfrentados de forma diferente por homens e mulheres.
O monitoramento dos indicadores dos ODS, os constrangimentos metodológicos para a realização de pesquisas acadêmicas e os debates éticos em torno da ascensão da inteligência artificial lançam luz sobre os desafios e riscos ainda enfrentados nesse sentido, tais como:
- Lacunas de dados de gênero. Podem ser de pelo menos dois tipos: ausência de dados e/ou déficit na qualidade dos mesmos. Por muito tempo, questões relacionadas ao uso do tempo e às vítimas de violência social ou de gênero, cruciais para entender as barreiras que as mulheres enfrentam ao participar dos mercados de trabalho, ficaram fora dos esforços de coleta de dados. Até o momento, a busca de evidências sobre esses problemas depende, em muitos casos, de flutuações na vontade política dos atores.
- Vieses de gênero na concepção, coleta, análise e disseminação de informações. A qualidade dos dados é afetada por vieses de gênero presentes em qualquer etapa do processo de geração de fontes de informação. É essencial identificar, reduzir e eliminar esses vieses para aproveitar ao máximo o potencial da informação, melhorar a compreensão dos fenômenos econômicos e sociais e informar adequadamente o desenho e a implementação de políticas públicas mais equitativas.
- Problemas de comparabilidade de dados dentro e entre países e ao longo do tempo. A comparabilidade é dificultada por limitações de recursos nos sistemas estatísticos nacionais, pela não adoção de padrões internacionais, pela falta de coordenação interagências e pelo intercâmbio insuficiente de melhores práticas. Na América Latina e no Caribe, pesquisas que coletam informações sobre emprego mostram diferenças em termos de representatividade (urbana versus rural), definição de variáveis-chave de emprego (como subemprego e informalidade), classificações ocupacionais ou uso de variáveis sociodemográficas ou econômicas para realizar análises desagregadas (por área, estado civil ou ramo de atividade econômica, entre outras). A irregularidade ou falta de periodicidade em determinados instrumentos também restringe a possibilidade de medir avanços ou avaliar a efetividade de políticas públicas que busquem promover a equidade de gênero, ou os impactos que crises tão severas como a pandemia da COVID-19 tiveram e terão a médio e longo prazos nas trajetórias de trabalho das mulheres. A consolidação dos sistemas de informação é fundamental para promover e reforçar o consenso sobre a igualdade de oportunidades e tornar visíveis de forma integral os espaços de superação das desigualdades entre homens e mulheres.
- Reprodução de vieses de gênero em novas tecnologias, ciência de dados e inteligência artificial (IA). A expansão das novas tecnologias não está isenta de riscos de perpetuar diversos vieses e práticas de discriminação, inclusive as baseadas em gênero. No final das contas, a IA se alimenta de fontes de informação que refletem tanto os valores predominantes quanto a dinâmica de poder. Quanto mais heterogêneo, inclusivo e diverso for o processo de construção e configuração de novas tecnologias e fontes de informação, menor a probabilidade de reproduzir esses vieses. A participação das mulheres nas áreas STEM é, novamente, uma condição necessária para gerenciar e minimizar esse risco.
A melhoria dos dados e da informação sobre as disparidades entre homens e mulheres deve ser acompanhada de quadros regulamentares que promovam equitativamente a igualdade entre homens e mulheres e a não discriminação a nível institucional. Só assim é possível garantir que os dados possam impactar na formulação de políticas públicas e subsidiar sua correta execução. A voz e a participação de diversos atores – como a academia e a sociedade civil – também é fundamental para a construção, validação e disseminação de informações e conhecimentos.
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Texto disponível em espanhol no blog Factor Trabajo
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