Para uma parte da força de trabalho global, sim.
Você se lembra quando o evento principal do dia era “ir para o trabalho”? Levantar-se, preparar-se e vestir-se para o trabalho, deslocar-se (mais ou menos) uma hora, chegar, trabalhar, participar de reuniões a portas fechadas, aquecer comida no micro-ondas público, almoçar discutindo as novidades do dia com os colegas, trabalhar um pouco mais, sair correndo para encontrar as crianças e ajudá-las com os deveres de casa enquanto preparamos o jantar, correr meia hora se sobrar algum tempo e, finalmente, “capotarmos” na cama para levantar às 5h30 e fazer tudo de novo.
Para muitos, esses dias já se foram. Mesmo para quem não deixou de “ir ao escritório” um só dia (como os trabalhadores de supermercados, ou os do transporte público, ou ainda os que insistiram e persistiram no trabalho presencial), a rotina de trabalho mudou. Mudaram os turnos, a dinâmica, os hábitos. Mas isso quer dizer que o escritório como conhecemos acabou para sempre, sendo a pandemia o grande gatilho, ou será que a flexibilização do espaço de trabalho já ganhava terreno antes?
Esses foram alguns dos temas discutidos por Eliana Bracciaforte, cofundadora e COO da plataforma latino-americana de trabalho freelancer Workana, e por Laura Ripani, chefe da Divisão de Mercado de Trabalho do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), em conversa sobre flexibilidade no trabalho, trabalho freelance e o futuro do trabalho na América Latina e no Caribe. Neste texto, fazemos uma breve revisão desse encontro.
O escritório em processo de desconstrução
A COVID-19 nos fez recorrer à flexibilização do trabalho para manter os processos produtivos e a economia funcionando diante das exigências de distanciamento social. Contudo, essa desconstrução do conceito estrito de escritório, concebido como um espaço de trabalho com turnos e vestimentas rígidos, e com presença física e pontualidade como indicadores de desempenho, já vinha acontecendo desde antes da pandemia.
“A partir desse momento eles deram laptops para todos na empresa, o que não era normal em 2006-2007; e eles nos pagavam pela internet em casa e nos aeroportos”, conta Eliana Briacciaforte, relembrando sua experiência no Google no início do milênio. “O conceito era que você pode ser produtivo em qualquer lugar”, ela acrescenta, observando que ainda era necessário ir ao escritório, mas ressaltando que a mensagem “eu posso trabalhar em qualquer lugar” apareceu cedo em sua carreira.
Como cofundadora de uma das maiores plataformas de trabalho freelancer da América Latina, ela destaca a importância fundamental de uma boa conexão de internet para poder trabalhar de qualquer lugar, algo que nem todos os trabalhadores da região possuem. Segundo a última edição da série sobre o futuro do trabalho do BID, a flexibilidade na América Latina e no Caribe se concentra principalmente entre os trabalhadores que têm ocupações com habilidades sofisticadas, empregos com menor carga de atividades manuais ou físicas e com maior acesso à internet em casa.
Dá para trabalhar sem escritório?
Embora os regimes de trabalho flexível tenham surgido há mais de 20 anos como um benefício para trabalhadores com responsabilidades familiares, a pandemia mudou as regras de onde e como trabalhar, ao mostrar que muitos trabalhadores podem ganhar a vida e produzir fora do escritório e do trabalho/ fábrica e em horários não convencionais, como afirma Laura Ripani.
Eliana Bracciaforte, natural da cidade de Córdoba, na Argentina, conta como precisou mudar para a capital quando terminou a universidade em busca de oportunidades de trabalho, e como hoje duvidaria um pouco da necessidade de sair de sua cidade para poder trabalhar e gerar renda.
“Descobrimos que as oportunidades não estão em todo lugar, mas o talento está. Tem muito talento em toda a América Latina”, afirma, ao explicar como a plataforma Workana surgiu há mais de 10 anos com a ideia de diminuir o gap entre talentos e oportunidades sem estar preso a um local físico.
Segundo ela, temos que parar de pensar no trabalho como um lugar.
É possível trabalhar sem um escritório na América Latina e no Caribe?
O ímpeto para a flexibilização trabalhista na região partiu principalmente dos trabalhadores e das empresas. Bracciaforte reconhece que as leis demoraram um pouco mais para serem adaptadas, acomodando acordos de trabalho flexíveis e regulando claramente o trabalho freelance e independente. É uma área em que ainda existem zonas cinzentas, especialmente em termos de acesso a benefícios trabalhistas. “Por exemplo, é normal que quem trabalha como freelancer tenha muita dificuldade para tirar férias”, diz Bracciaforte.
As empresas consultadas no estudo do BID concordam com a posição de Bracciaforte: um dos principais entraves ao uso da flexibilidade são as regulamentações trabalhistas desatualizadas. A pandemia acelerou as leis trabalhistas flexíveis, mas alguns países as adotaram como medidas temporárias e depois as eliminaram.
Inclusão trabalhista por meio da flexibilização: os dois lados da moeda
Ao serem questionadas se a flexibilidade é uma ferramenta de inclusão no mercado de trabalho para grupos com dificuldade de acesso a empregos de qualidade, Bracciaforte e Ripani exploraram tanto o cenário de inclusão quanto o de exclusão que pode advir do trabalho flexível.
Para Bracciaforte, quando estamos mais em trabalho remoto, em que nos vemos menos, o problema da exclusão ou da falta de diversidade pode se tornar invisível. “Um fiscal não pode passar na empresa para ver o que está acontecendo”, exemplifica.
No entanto, no caso de trabalhos freelance e oportunidades que podem ser obtidas através de plataformas como a Workana, por serem projetos pequenos e específicos, e por serem visíveis os portfólios de trabalho dos freelancers, não há processos de “entrevista”. Isso significa que as pessoas são avaliadas e selecionadas com base em seu trabalho, não em suas características demográficas. “Não é preciso saber as condições de vida de uma pessoa, não importa. Não importa gênero, raça ou religião, apenas se você souber fazer o trabalho”, explica.
Qual é o papel que a flexibilidade do trabalho desempenha na redução ou ampliação das disparidades de gênero?
Laura Ripani perguntou a Eliana Bracciaforte como o mundo do trabalho é diferente para um homem e para uma mulher. Mulher trans, Bracciaforte acredita que muitas das oportunidades que teve em sua carreira antes de sua transição, mesmo tendo trabalhado muito por elas e conquistado com mérito, vieram mais facilmente por viver parte de sua vida como homem. “Por outro lado, penso nisso, não apenas como mulher, mas também como mulher trans, e acho que não teria recebido muitos deles, ou quase todos”, diz.
Ela reconhece como os esquemas de trabalho flexível podem permitir que mulheres com tarefas domésticas tenham acesso a oportunidades de gerar renda, trabalhando em projetos em seu próprio tempo e ritmo, não sem perceber o risco implícito que acompanha essa abordagem: perpetuar e reafirmar a noção que o maior fardo das tarefas domésticas deveria recair sobre os ombros das mulheres.
Repensando a jornada de trabalho
A conversa levou as duas especialistas em mercado de trabalho a cogitar a ideia de uma vida em que se trabalhe menos dias, até menos horas. A semana de trabalho de 4 dias é uma maneira de reorganizar o trabalho, mas talvez devêssemos nos perguntar quantas horas precisamos trabalhar? Eliana Bracciaforte nos convida a explorar o quanto as semanas de trabalho de 40 ou 48 horas fazem sentido hoje. Talvez trabalhar menos horas permita que mais pessoas tenham acesso ao trabalho. “Talvez seja uma solução para o desemprego”, acrescenta Laura Ripani.
Confira a conversa na íntegra (em espanhol):
Baixe gratuitamente a nova edição da nossa série “O futuro do trabalho na América Latina e no Caribe: flexibilidade, veio para ficar?” e aprenda:
• O que são regimes flexíveis de trabalho, que tipos existem e quais são utilizados nos países da região?
• Como os países estão se saindo em termos de regulamentação de acordos de trabalho flexíveis
• Quais países da América Latina e Caribe já têm a semana de trabalho de 4 dias em sua legislação trabalhista?
• As características das empresas que usam regimes de trabalho flexíveis
• As características dos trabalhadores que usam regimes de trabalho flexíveis
Texto publicado originalmente em espanhol, no blog Factor Trabajo
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