O tráfico de pessoas é um crime complexo, de difícil detecção, que atinge quase 50 milhões de pessoas, segundo estimativas globais de escravidão moderna para o ano de 2021, o que representa um aumento de 10 milhões de pessoas nos últimos cinco anos. Dessas 50 milhões de pessoas, 27,6 milhões são forçadas a trabalhar contra sua vontade e 22 milhões estão em um casamento forçado. Além disso, estima-se que a maioria das vítimas são mulheres e meninas, e uma em cada quatro vítimas é menor de idade. Trabalhadores migrantes são até três vezes mais vulneráveis a serem vítimas de trabalho forçado.
Na América Latina e no Caribe, no início da pandemia, previa-se que a crise econômica, social e de saúde aumentaria a vulnerabilidade de certas populações a serem vítimas do tráfico de pessoas. Embora o tráfico tenha se tornado ainda mais clandestino durante a pandemia, dados preliminares mostram que em alguns países ele aumentou (principalmente recrutamento local e exploração).
As vítimas que sofreram mais com a violência e o estigma e que enfrentaram mais dificuldades de acesso a serviços foram mulheres, meninos e meninas, que já constituíam a maioria das vítimas de tráfico identificadas na região (87% na América Central e Caribe e 75% na América do Sul) e estão entre as populações mais vulneráveis, junto com refugiados e migrantes.
O Quinto Diálogo Técnico sobre Tráfico de Pessoas, realizado em Washington, D.C. no dia 25 de outubro, possibilitou conhecer em primeira mão os avanços, experiências e desafios no enfrentamento desse crime por parte das instituições de segurança e justiça, bem como de iniciativas do setor privado.
3 fatores-chave do setor de segurança e justiça para enfrentar o tráfico de pessoas
Durante o evento, representantes do Ministério Público, Polícia, Justiça e Ministérios do Tráfico da Argentina, Espanha, Estados Unidos, Peru e Trinidad e Tobago apontaram três fatores-chave para fortalecer a capacidade do Estado de prevenir e responder ao tráfico de pessoas[1]:
- Unidades especializadas em tráfico de pessoas contribuem para melhorar a prevenção, o atendimento às vítimas e a investigação. As unidades policiais especializadas desempenham funções essenciais como sensibilização do cidadão, prevenção, detecção e identificação de casos, resgate de vítimas, detenções, bem como investigação, na qualidade de polícia judiciária. Essas unidades trocam informações estratégicas que se tornam operacionais. Além disso, seu papel é muito importante na sensibilização para possíveis casos de tráfico, uma vez que muitas vítimas desconhecem a exploração e/ou não se identificam como tal. Por sua vez, as promotorias especializadas podem melhorar a qualidade e a celeridade dos processos, colocando em prática técnicas especiais de investigação, melhorando a coleta de provas e a construção dos casos. Suas funções também incluem a realização de iniciativas especiais, como Equipes de Investigação Conjunta. Por contarem com pessoal com conhecimentos e habilidades especializadas e com mandato específico na matéria, essas unidades também se coordenam melhor entre si, dentro de um país, e entre países, como é o caso da Rede Ibero-Americana de Procuradores Especializados em Tráfico de Pessoas e Contrabando dos Migrantes (REDTRAM). Esta instância de colaboração informal entre Ministérios Públicos em investigações transfronteiriças entre dois ou mais países gera maior qualidade na investigação e proteção das vítimas, contribuindo para a redução da impunidade deste crime.
- Uma abordagem centrada na vítima é essencial. Isso significa que os operadores do setor podem entender o trauma vivido e as consequências que o tráfico gera na vítima e ter empatia e habilidades para identificar dois elementos centrais desse crime: a coerção e a vulnerabilidade. Gerar um caso e levá-lo a julgamento de forma exitosa é algo que não deveria ter como objetivo apenas a prisão e o julgamento dos responsáveis, mas também a libertação da vítima e a melhora de sua situação. Trata-se de facilitar o acesso a serviços de apoio imediato, em coordenação com os prestadores, como o apoio emocional, bem como o atendimento de necessidades básicas como alimentação, alojamento, assistência jurídica e cuidados médicos. A médio prazo, a abordagem centrada na vítima deve considerar o empoderamento para a independência, incluindo o acesso à formação e a oportunidades de reinserção no mercado de trabalho. É importante considerar que as necessidades podem ser mais prementes para vítimas com maior grau de vulnerabilidade, como menores de idade, que devem passar por uma única entrevista na câmera Gesell como prova antecipada para evitar sua revitimização. Também no caso de migrantes, a quem alguns países outorgam status migratório especial durante e após a investigação, repatriamento seguro nos casos em que as vítimas assim o desejem e proteção das suas famílias no país de origem.
- A cooperação e coordenação interinstitucional dentro de cada país e entre países é essencial para fornecer uma resposta abrangente e oportuna. Para além da devida coordenação que deve existir entre os operadores do setor de segurança e justiça, deve existir também um sistema de encaminhamento para os prestadores de serviços. Além disso, deve haver uma comunicação fluida com outras agências estatais, como institutos da infância, ministérios e inspeções do trabalho e unidades de migração. Essa coordenação torna-se ainda mais urgente quando o tráfico ocorre em contextos complexos, como locais de fronteira ou de difícil acesso, junto com outros crimes como extração ilegal de madeira e garimpo, e afetando vítimas vulneráveis, como crianças de comunidades nativas e indígenas. A conscientização sobre os riscos e modalidades de exploração mais comuns, gerando uma cultura de denúncia e realizando operações preventivas para detectar casos precocemente em locais de coleta ou trânsito, funcionam melhor quando contam com a participação das autoridades de todos os países envolvidos.
Por que é fundamental que o setor privado esteja envolvido no combate ao tráfico humano?
Na discussão sobre o tráfico de pessoas, representantes do setor privado como o Walmart, do governo guatemalteco, de organizações internacionais, da sociedade civil e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) discutiram as motivações e o papel fundamental que desempenham o setor privado na prevenção e identificação de casos de tráfico humano[2].
- Existem incentivos comerciais para o setor privado desenvolver capacidade para combater o tráfico humano. Os valores e princípios corporativos de dignidade do funcionário e os princípios orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos são o ponto de partida para muitas empresas. No entanto, existem outros incentivos relacionados ao desempenho financeiro direto e indireto de um negócio. Ter uma empresa livre do tráfico de pessoas melhora o ambiente interno de trabalho, a produtividade, previne a ocorrência de outros crimes do crime organizado, diminui a responsabilidade criminal por crime cometido em estabelecimentos comerciais e, principalmente, aumenta a boa reputação da empresa. Os clientes, em sua maioria jovens, buscam cada vez mais empresas sustentáveis que possam garantir que seus produtos sejam livres de trabalho forçado. Ao mesmo tempo, os investidores também exigem que as empresas nas quais investem cumpram os padrões ambientais, sociais e de boa governança. No que diz respeito à importação de produtos, a tendência das regulamentações globais inclui uma abordagem de direitos humanos, onde é obrigatória a denúncia de violações e é impedida a entrada de mercadorias resultantes de trabalho forçado. Outro incentivo importante para as empresas está na oportunidade de colocar seus produtos em mercados nacionais que estabelecem como padrão a cadeia produtiva livre de tráfico de pessoas. Finalmente, as PMEs de determinados setores valorizam a adoção de boas práticas contra o tráfico como estratégia para proteger seus negócios do ponto de vista comercial, legal e ético.
- Criar e manter alianças estratégicas com o setor privado é fundamental para a luta contra o tráfico de pessoas. É preciso envolver todos os setores da sociedade no combate a esse crime. Em particular, o setor privado é um ator chave na prevenção e identificação de casos de tráfico humano. Empresas de determinados setores, como transporte ou turismo, correm o risco de serem utilizadas como espaço privilegiado pelos traficantes. O acesso territorial que as empresas privadas têm, sobretudo em zonas remotas e fronteiriças, e o alcance de um grande número de pessoas são pontos estratégicos para conseguir um impacto real no combate a este flagelo. A capacitação das empresas é fundamental, pois sua influência na comunidade e em sua própria força de trabalho lhes confere uma posição única para combater esse crime.
- Empresas em conjunto com o setor público e organizações da sociedade civil têm implementado iniciativas para combater o tráfico de pessoas. No setor de varejo, o Walmart realiza auditorias com base em relatórios internacionais para entender onde está o maior risco de tráfico na cadeia de suprimentos. O Walmart solicita relatórios de seus fornecedores sobre o recrutamento de trabalhadores migrantes para tentar garantir que eles não sejam vítimas de trabalho forçado. Na indústria do turismo, “The Code” (Código de Conduta para a Proteção de Crianças contra a Exploração Sexual em Viagens e Turismo) é uma iniciativa multissetorial que busca fornecer conscientização, ferramentas e apoio à indústria de viagens e turismo para prevenir a exploração sexual de crianças e adolescentes. Na República Dominicana, o UNICEF conseguiu que 63 empresas de turismo, entre hotéis e táxis, aderissem a um código de conduta contra a exploração de meninas e meninos, e quatro empresas de telecomunicações aderissem à iniciativa “We Protect” para a prevenção da violência por meio de suporte técnico online e campanhas de conscientização. Na Guatemala, foi lançada a estratégia “Viajar Livre do Tráfico” que, com a coordenação da maior empresa de transporte do país, capacitou os motoristas e vendedores de passagens para identificar as vítimas do tráfico de pessoas. No México, uma aliança entre a organização Sin Trata, o CDMX Citizen Council, o UNODC e a empresa UBER treinou motoristas para detectar e denunciar anonimamente possíveis casos de tráfico. Essas iniciativas são fundamentais para começar a definir boas práticas que possam ser replicadas por empresas de outros setores.
Durante o Quinto Diálogo Técnico também foram anunciados os governos subnacionais de três países da região que venceram o concurso Gobernarte 2022 – Prêmio Pablo Valenti na categoria Inovação Pública Contra o Tráfico de Pessoas. Os premiados foram o “Programa de Segurança Inteligente para prevenir o crime de tráfico de pessoas a partir das representações sociais” da Província de Tucumán, na Argentina, os “Protocolos de prevenção e atenção ao Tráfico de Pessoas” de Medellín, na Colômbia, e a iniciativa “Prevenção do Tráfico em Comunidades Educativas de Pereira: Incidência da Organização Juvenil” apresentado pela Prefeitura de Pereira, Colômbia, em parceria com a Universidade Livre.
Depois do encontro, foi realizada a Primeira Oficina sobre Tráfico de Pessoas na ALC, no marco do projeto Modelo para fortalecer as capacidades institucionais do setor de segurança e justiça para responder ao tráfico de pessoas na ALC com enfoque de gênero e enfoque na esfera digital, com a participação de representantes dos 14 países membros e parceiros estratégicos. O referido workshop incluiu sessões de trabalho sobre o conteúdo dos guias regionais de ação para prevenção, proteção e atenção às vítimas e perseguições, que estão sendo desenvolvidos no âmbito do projeto. Também houve intercâmbios sobre os avanços e desafios dos países, plataformas de assistência às vítimas e experiências de integração de gênero e abordagem digital, e uma abordagem da experiência dos Estados Unidos na prevenção e resposta ao tráfico de pessoas, tanto do público setor público (Departamento de Estado, Departamento de Segurança Interna e Departamento de Justiça) e de organizações da sociedade civil (Polaris, Sanctuary for Families e Innocents at Risk). O tráfico de pessoas é um crime complexo e difícil de detectar, por isso uma abordagem multissetorial e alianças estratégicas com o setor privado tornam-se essenciais para melhorar sua prevenção, atendimento às vítimas e repressão. No BID, continuamos trabalhando para fortalecer a capacidade estatal das instituições de segurança e justiça da região para que a resposta a esse crime seja integral e oportuna, com foco na vítima.
[1] O painel sobre Fortalecimento da Capacidade do Estado para prevenir e responder ao tráfico humano incluiu Colleen Phillips, advogada da Divisão de Direitos Civis do Departamento de Justiça dos Estados Unidos; María Alejandra Mángano, Procuradora adjunta da Promotoria para o Tráfico e Exploração de Pessoas (PROTEX) do Ministério Público da Argentina; Paola Hittscher Angulo, Promotora Provincial da Promotoria Especial para os delitos de Tráfico de Pessoas de Loreto do Ministério Público da Nação do Peru; Luis Mayandía Fernández, Chefe da Unidade Central de Redes de Imigração Ilegal e Falsificação de Documentos da Polícia Nacional da Espanha e Kimoy Thomas-Williams, Subdiretor da Unidade Anti-tráfico do Ministério de Segurança Nacional de Trinidad e Tobago. O painel foi moderado por Nathalie Alvarado, Coordenadora do Núcleo de Segurança Cidadã e Justiça da Divisão de Inovação do BID para Servir os Cidadãos.
[2] O painel sobre alianças estratégicas com o setor privado incluiu Sandy Recinos, Secretária Executiva da Secretaria contra a Violência Sexual, Exploração e Tráfico de Pessoas (SVET) da Guatemala; Kendra Gregson, Conselheira Regional de Proteção Infantil do UNICEF; Mariana Ruenes, Diretora da organização Sin Trata de México; Serena Grant, Chefe de Relações com o Setor Privado da Fundação Walk Free da Austrália; e Anbinh X. Phan, Diretor de Assuntos Governamentais Globais e Diplomacia Corporativa do Walmart. O painel foi moderado por Isabel Berdeja, Diretora de Gênero, Diversidade e Inclusão da Divisão de Serviços de Consultoria do BID Invest.
Este texto foi publicado originalmente em espanhol, no blog Sin Miedos.
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