A conexão entre a gastronomia e o desenvolvimento urbano é fascinante, especialmente quando bairros culinários se convertem em propulsores de novas tendências urbanísticas, com novos processos de consolidação socioeconômica, cultural e ambiental. Quando isso acontece, a gastronomia passa a ser algo mais que um meio de sobrevivência – se transforma na arte do bem viver, um fio condutor que entrelaça histórias e identidades, moldando uma parte essencial da idiossincrasia urbana e até de todo um país. Neste blog, vamos falar sobre como essa conexão ocorre na América Latina e no Caribe, com efeitos para além de suas fronteiras.
Motor do crescimento econômico local
A gastronomia não é apenas uma nostalgia culinária ou prazeres desconhecidos a serem descobertos – é também um vigoroso motor de prosperidade. A recentemente denominada “gastro-economia”, que inclui desde a produção e distribuição de alimentos, restaurantes, bares, serviços de entrega de comida, até as indústrias de bebidas e o turismo, cria numerosos postos de trabalho, estimula o empreendedorismo social e contribui para impulsionar as economias regionais. Inclusive, os festivais culinários atraem pessoas de várias condições sociais, gerando rendimentos significativos para os cofres públicos e o setor de hospedagem, o comércio varejista e outras áreas relacionadas. No México, por exemplo, emprega mais de 1,7 milhão de pessoas, sendo um dos setores mais importantes da economia nacional, representando 6,5% do PIB. No Brasil, cria emprego para quase 6 milhões de pessoas e representa 6,2% do PIB. No Peru, gera mais de 4% do PIB, além de 400 mil empregos diretos e indiretos.
Top 10 países em que a gastronomia mais contribui para o PIB:
Reconhecendo esse potencial, investidores e autoridades municipais promovem o desenvolvimento de bairros gastronômicos para transformar áreas deterioradas em centros vibrantes de criatividade culinária e interação cultural, o que, por sua vez, atrai novos moradores e atividades empresariais. Os bairros de Roma e Condesa, na Cidade do México, Miraflores e Barranco, em Lima, ou Palermo e Puerto Madero, em Buenos Aires, são ótimos exemplos de como interligar gastronomia e desenvolvimento econômico, promovendo uma experiência sociocultural urbana renovada. Cabe advertir, no entanto, que essa mudança tende a provocar um aumento generalizado do valor dos imóveis, conflitos de gestão pública e processos de gentrificação na cultura alimentar ou “gourmetização”, com diversas implicações para os moradores. Devido a sua importância, esses aspectos serão abordados em outro texto.
Um ambiente para troca de ideias e experiências
Algumas cidades da América Latina e do Caribe, assim como de outras partes do mundo, se orgulham de suas peculiaridades culinárias ao misturar tradições étnicas e influências de seu passado à criatividade da cozinha contemporânea. Desde as movimentadas barracas de comidas de rua na Cidade do México, passando pelas pitorescas parrilhas de frango ao estilo jerk em Kingston, até as vibrantes cevicherias de Lima, a gastronomia se converte na quintessência desses lugares. Quando moradores e turistas passeiam por uma cidade, quase sempre querem embarcar em uma aventura culinária em busca das delícias locais. Quem poderia resistir a uma parrilada em Buenos Aires ou Montevidéu, ou a uma deliciosa feijoada no Rio de Janeiro, ou aos bolinhos de caracol de Nassau? Viagens gastronômicas como essas não apenas se convertem em lembranças inesquecíveis, mas também em parte do imaginário e em atração peculiar de cada localidade.
Além disso, a gastronomia é um conector social único. Seja um jantar em família, um almoço de negócios ou uma reunião entre amigos, a refeição compartilhada cria laços humanos e fomenta o intercâmbio de experiências e ideias. Por outro lado, os agitados mercados de alimentos se convertem em pontos de encontro onde tradições, vidas e comunidades se entrelaçam. Em locais como o Mercado Central de Santiago, o Mercado 9 de Outubro em Cuenca, ou a o mercado a céu aberto de Queen’s Park Savannah em Puerto España, o aroma das especiarias, as cores das frutas e verduras, o chiado da comida sendo preparada e as conversas animadas com os clientes criam um ambiente especial, ao mesmo tempo que geram um sentimento de pertencimento e orgulho para a população local.
Desta forma, a gastronomia constrói pontes, permitindo tanto a moradores como a visitantes compararem e apreciarem diversos costumes. Não é de estranhar que as cidades que têm uma oferta gastronômica variada propiciem mais vínculos sociais, provando o poder da comida como fator de interação social positiva. No entanto, é preciso procurar um equilíbrio entre o chamado “gastroturismo” e as necessidades dos moradores. Os distritos gastronômicos em voga tendem a atrair mais turismo, o que pode provocar superlotação, trânsito e uma sobrecarga sobre a infraestrutura existente. Por isso, a participação da comunidade é essencial para garantir que o desenvolvimento desses centros gastronômicos beneficie os moradores e conserve o legado patrimonial e ambiental.
Qual a receita da sustentabilidade?
Cidades do mundo todo enfrentam uma série de desafios, especialmente as mudanças climáticas, o desperdício de alimentos e a insegurança alimentar. As cidades e a gastronomia sustentável nos países da América Latina e do Caribe podem contribuir para a resposta a esses desafios e para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).
O Basque Culinary Center, uma instituição pioneira na promoção do desenvolvimento da gastronomia, em colaboração com a Secretaria Geral Iberoamericana (SEGIB), publicaram um documento no qual indicam como a gastronomia pode contribuir para os ODS na Iberoamérica, destacando seu impacto na economia, cultura, saúde e meio ambiente.
Os movimentos “da fazenda para a mesa” promovem a utilização de ingredientes de origem local, reduzindo o caminho da produção até o destino, a pegada de carbono e os alimentos ultraprocessados. Por sua vez, a construção de jardins e hortas comunitárias no alto de prédios ou as medidas para promoção da biodiversidade urbana, tornam as cidades mais verdes e habitáveis.
Práticas sustentáveis, como a apicultura e a horticultura urbana ou o fortalecimento da rede de mercados aumentam a resiliência dos sistemas alimentares na América Latina e no Caribe. Quando uma cidade aumenta sua capacidade de produzir alimentos, fica menos vulnerável a interrupções na cadeia de suprimentos. Além disso, programas de redução de resíduos e de desperdício de alimentos, bem como o apoio a economias em áreas rurais vizinhas, têm impacto positivo no meio ambiente e no bem-estar geral, garantindo mais acesso a alimentos nutritivos e aumentando a segurança alimentar. Este é um tema estratégico para o Banco Interamericano de Desenvolvimento, já que nos países da região que alcançaram sucesso culinário internacional, uma parte relevante da população ainda sofre com a fome e a desnutrição.
Não nos esqueçamos que a relação entre a gastronomia e o desenvolvimento urbano é dinâmica e multifacetada. Os distritos gastronômicos podem fomentar o desenvolvimento econômico, social, cultural e ambiental de uma cidade. A gastronomia não é apenas o que temos no prato, mas também histórias, lembranças e conexões. Compreendendo e gerindo melhor esta relação, as cidades têm a possiblidade de aproveitar seu potencial para impulsionar mais sustentabilidade, preservar o patrimônio cultural e fomentar comunidades vibrantes e inclusivas. Desta forma, devemos reconhecer o valor da gastronomia como um elemento catalisador, especialmente quando está ancorada ao território e às necessidades da população. Para isso, é primordial que trabalhemos para que a inovação culinária e o desenvolvimento urbano caminhem de mãos dadas.
Texto disponível também em espanhol e inglês.
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