A crise da COVID-19 impactou as finanças públicas de todos os países. A contração econômica levou a uma queda na arrecadação, enquanto as necessidades de gasto público seguiram em ascensão para diminuir os efeitos econômicos e sociais. Isso tem desencadeado – ou intensificado – desequilíbrios nas contas públicas que levaram a um incremento da dívida pública.
No período pós-COVID, serão necessárias medidas que fortaleçam as finanças públicas e garantam a sustentabilidade fiscal. Uma opção será a modernização das administrações tributárias aproveitando as ferramentas digitais e o processamento de dados para gerar ganhos de eficiência e incrementar a receita pública mesmo sem a realização de reformas fiscais que modifiquem, por exemplo, alíquotas e deduções. Um exemplo de sucesso nesse tipo de projeto é o Programa de Apoio à Gestão dos Fiscos do Brasil[1] (Profisco), que vem sendo implantado pelos estados brasileiros, com o apoio técnico e financeiro do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).
O projeto, em sua primeira fase Profisco I, apoiou a digitalização das notas fiscais de papel a eletrônicas e o avanço da capacidade das autoridades fiscais para processar a informação proporcionada por esses documentos, elementos que permitiram aumentar a arrecadação e melhorar o clima de negócios, promovendo um maior investimento, a geração de empregos de maior qualidade e melhores salários.
O Profisco I foi aprovado pela Diretoria Executiva do BID em 2008, sob a modalidade de Linha de Crédito Condicional (CCLIP)[2], e com valor estabelecido em US$500 milhões. Em virtude da forte demanda, o Programa foi ampliado em US$200 milhões em 2013. O Programa teve por finalidade promover a sustentabilidade fiscal e o crescimento econômico do país e seu objetivo geral é contribuir para a integração dos fiscos e a modernização da gestão fiscal, financeira e patrimonial. Desde 2009, 22 (de 26) estados, o DF e o governo federal participaram do Programa[3].
Nota Fiscal Eletrônica e Profisco
Em 2003, o Congresso Nacional do Brasil aprovou a Emenda Constitucional nº 42, que estabeleceu que as administrações tributárias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios atuassem de forma integrada e atribuiu validade jurídica aos documentos exclusivamente digitais. Para dar cumprimento a essa diretriz nacional, o Governo Federal e os demais entes federados acordaram na implantação de um modelo padronizado a nível nacional de um conjunto de documentos fiscais de existência exclusivamente eletrônica que compõe o Sistema Público de Escrituração Digital (SPED).[4] Entre eles, destaca-se a NF-e para cada transação gravada pelo Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS).
Formalmente a NF-e é definida como “documento fiscal eletrônico que substitui a emissão do documento fiscal em papel, com validade jurídica garantida pela assinatura digital do remetente, simplificando as obrigações acessórias dos contribuintes e permitindo, ao mesmo tempo, o acompanhamento em tempo real das operações comerciais pelo Fisco.”[5]
A NF-e foi introduzida inicialmente em alguns estados e setores econômicos em 2006, ampliando gradativamente sua cobertura até que, em 2011, sua implantação foi concluída na totalidade dos estados e atividades.
Apesar da concepção da NF-e e do SPED ser anterior ao início da preparação do Profisco I, o então Ministério da Fazenda precisava viabilizar alternativas para financiar a adoção desse modelo pelos entes federados, garantindo sua implantação em nível nacional. Este foi um dos fatores motivadores para a solicitação do Programa ao BID, que foi implantado pelos estados paulatinamente desde 2009.
Além de apoiar a implantação a nível nacional, o Profisco I ajudou a construir a infraestrutura e a capacidade para processar e analisar a informação proveniente das transações respaldadas pela NF-e e pela Escrituração Fiscal Digital (EFD). A informação chega na administração tributária em arquivo formato xml. O Profisco I financiou investimentos para a efetiva recepção destes documentos e montagem de suas bases de dados, permitindo o uso efetivo da informação proveniente das faturas eletrônicas para melhorar as operações das secretarias de fazenda estaduais.
Profisco e NFe impulsores da arrecadação, número de empresas e salários
A mudança da forma em que as transações foram faturadas e a capacidade dos fiscos para processar e analisar essa informação foram fatores que revolucionaram a gestão fiscal dos estados e a relação entre contribuinte e fisco, levando a incrementos na arrecadação e melhorias no mercado empresarial.
Uma avaliação do Profisco I, usando a metodologia de diferenças-em-diferenças (DID), revela um impacto positivo sobre a arrecadação tributária dos estados, um dos principais objetivos do programa, assim como aumento do número de unidades locais de empresas e salário médio dos trabalhadores do setor privado.
O DID aproveita duas fontes de variações do Profisco: (i) alguns estados não conseguiram implantar o programa e (ii) os estados tiveram variação no ano de implantação do programa. Assim, o método permite identificar o impacto do programa ao comparar o impacto na arrecadação tributável e em outras variáveis de mercado entre os estados que adotaram o programa (medido pela finalização dos desembolsos) com aqueles que não o implantaram em cada ano.
Assim, a regressão relaciona a variável de interesse (arrecadação, número de empresas e salário médio), que queremos saber se foi impactada, em cada estado e em cada ano contra uma variável que indica a adesão ao Profisco em cada estado e período, além de um conjunto de controles que poderiam afetar as arrecadações estaduais (PIB tributável, exportações, efeitos de ano, efeitos fixos de estado). O estudo analisa o período de 2002 a 2019 e utiliza dados de finanças estaduais do SICONFI (Tesouro Nacional), unidades locais de empresas do CEMPRE (IBGE) e salários da RAIS.
Os resultados mostram que os estados que implantaram Profisco foram beneficiados:
- Arrecadação total (inclui ICMS, IPVA, ITCD e outros tributos de competência estadual) 11,7% superior que aqueles estados/anos sem Profisco.
- Incremento de 1,7% no número de unidades locais de empresas e de 3,4% no salário médio dos trabalhadores formais do setor privado entre estados/anos com Profisco e sem Profisco.
Também se estimou o efeito complementar entre NF-e e Profisco I, identificando que os dois programas tiveram impacto significativo nas variáveis estudadas. Isto reforça a ideia de que o Profisco outorgou ferramentas ao fisco para melhorar sua inteligência e capacidade analítica para processar e analisar informações decorrentes do documento digital.
Por que o Profisco incrementou a arrecadação, número de empresas e salários?
A experiencia dos estados nos mostra que a digitalização teve dois tipos de impacto importantes na administração tributária. Primero, a digitalização dos documentos fiscais reduziu os erros e aumentou a velocidade com que o fisco obtém a informação das transações.
Cabe lembrar que anteriormente o registro fiscal das transações econômicas era feito com notas fiscais impressas em papel. O fisco recebia as informações com uma defasagem de tempo e sujeita a erros. Havia maior oportunidade para os contribuintes distorcerem os valores tanto da compra efetuada quanto do imposto a pagar, bem como para omitir informações.
Mesmo que não houvesse o propósito de sonegar, poderiam ocorrer erros na preparação dos documentos e das declarações mensais, realizados manualmente. Além disso, as empresas precisavam de infraestrutura e logística para digitar, transportar e armazenar os documentos fiscais de compra e venda, emitidos em papel. A autoridade fiscal também levava tempo para processar os documentos em papel, etapa que também estava sujeita a erros e que exigia capacidade de armazenagem e de gestão documental. Assim, a NF-e e o Profisco permitiram à autoridade tributária fiscalizar praticamente em tempo real, identificar erros com maior celeridade, elaborar modelos de riscos, focalizar esforços de auditoria e reduzir custos operacionais e discrepâncias entre os valores reportados nas distintas fases da operação.
O segundo tipo de impacto está relacionado à modernização dos processos, outra condição importante para fazer com que a transformação digital possa gerar os benefícios esperados. Mais especificamente, foi necessário que “a administração tributária tenha assimilado este mecanismo dentro dos seus processos internos de controle de tal forma que se execute um sistema integral de captura, validação, tabulação e integração automática com outras fontes de informação, de tal sorte que os cruzamentos de informações sejam feitos de maneira automatizada” (Álvarez et al., 2018). É dessa forma que a NF-e e o Profisco se complementam.
Ou seja, a arrecadação tributária aumentou porque a autoridade fiscal fortaleceu a sua capacidade real e percebida de detectar inconsistências, levando a um aumento do cumprimento fiscal. No modelo clássico de evasão fiscal (Allingham e Sandmo, 1972), a decisão de indivíduos e empresas de quanto imposto pagar e evadir parte dos benefícios e custos de cada ação, o que é determinado pela punição legal por evadir impostos e pela probabilidade de ser pego cometendo a ilegalidade. Assim, um aumento de ambos os fatores (grau de penalização e probabilidade de detecção) incrementa o custo da evasão e, desta forma, impacta positivamente a decisão de pagar impostos, contribuindo para um maior cumprimento tributário. Especificamente, as duas políticas são instrumentos que melhoram a percepção e capacidade do fisco para detectar irregularidades nas informações fornecidas pelos contribuintes e potencializam o cumprimento das obrigações fiscais.
Externalidades positivas
Além disso, programas de modernização na gestão fiscal podem ter externalidades positivas. Por exemplo, a informalidade, seja de empresas ou trabalhadores, está intimamente ligada à evasão fiscal. Este conceito pode tomar a forma de empresas, geralmente pequenas, que não se registram com autoridades trabalhistas e tributárias pertinentes; empregados que não constam da folha de pagamentos, entre outros (Slemrod, 2016).
A maior capacidade de detecção de empresas com comportamentos de risco por parte do fisco pode fomentar a formalização das atividades. A possibilidade de monitoramento eletrônico de todas as etapas da cadeia produtiva e o controle em tempo real das operações de substituição tributária[6], gerados pelos documentos fiscais eletrônicos, levam a que os próprios contribuintes passem a exigir que seus fornecedores estejam legalmente formalizados, sob pena de não fazer negócios, ter acesso a crédito e nem vender para o setor público.
Assim, a NF-e, com a consequente virtualização de serviços tributários, eleva a probabilidade de detecção de fraudes, gerando um aumento na formalização das empresas – especialmente as micro e pequenas que antes atuavam na informalidade. No caso particular do Brasil, Mckinsey e IDV (2014) associam a queda da informalidade a uma menor flexibilidade para cometer atos de evasão através da substituição tributária e às notas fiscais que levaram aos consumidores a aceitar menor informalidade.[7]
Outro potencial efeito vem pela simplificação do cumprimento tributário e diminuição dos custos, que estavam relacionados com a burocracia e o tempo para elaboração, gestão, transporte e armazenagem das notas fiscais em papel. A transformação digital do documento permite a alocação de recursos a usos mais produtivos como investimento ou contratação de pessoal dedicado a atividades mais substantivas e alinhadas com o tipo de serviços fornecidos ou bens produzidos pela empresa. Isso pode levar a um incremento dos salários médios dos trabalhadores formais sinalizando uma maior produtividade.
Dados os benefícios percebidos da digitalização dos documentos fiscais, nos últimos anos vários países desenvolvidos e em desenvolvimento têm implantado esta nova tecnologia. Na América Latina, além do Brasil, países como Chile, Argentina, México, Peru, Equador e Uruguai aderiram a esta tecnologia, mostrando efeitos positivos na arrecadação.[8]
Em suma, o Profisco permitiu a simplificação e tornou mais barato o cumprimento dos trâmites tributários para as empresas, ao mesmo tempo que incrementou a capacidade de fiscalização da autoridade tributária, permitindo uma maior facilidade de detectar e sancionar irregularidades nas declarações das empresas, e dissuadindo estes comportamentos.
Isso levou, em primeiro lugar, a uma redução no custo de fazer negócios (menos horas-homem e acessórios para faturar e declarar impostos), liberando recursos para mais investimento e emprego substantivo e produtivo. Em segundo lugar, gerou um incremento no cumprimento tributário e trabalhista, ao criar um temor por parte dos contribuintes de ser auditado e sancionado em caso de cometer erros e irregularidades.
Conclusões
A transformação digital do Profisco I foi efetiva porque as soluções implementadas foram adaptadas às diferentes condições dos fiscos e da economia de cada estado. O desenho tomou em conta a grande heterogeneidade, e foram implementadas soluções que resolveram os gargalhos específicos das administrações tributarias para arrecadar mais. Por isso, acreditamos que projetos como o Profisco podem ser implantados em governos de países ou unidades subnacionais com marcadas diferenças em termos de tamanho territorial, econômico, social e fiscal.
O êxito do Profisco I resultou em uma nova demanda por parte dos estados brasileiros de aprofundar ainda mais a modernização da gestão fiscal através do Programa Profisco II, que estamos agora em processo de implantação. Como conclusão, os resultados descritos neste blog mostram claramente o grande retorno que este tipo de programa de transformação digital da administração tributária pode gerar – tanto em termos de arrecadação e para a economia em geral – quando comparamos com o valor do investimento requerido. Esperamos que esta experiência brasileira sirva como um benchmark de sucesso para outros governos e administrações tributárias que queiram empreender uma modernização da sua gestão fiscal, utilizando como eixo estratégico a transformação digital.
[1] Para maior detalhe do programa e seus produtos ver Mac Dowell, Maria Cristina, André Martínez Fritscher, Soraya Ferreira, Ana Lucia Dezolt e Patricia Bakaj (2020). “Modernizando a gestão fiscal brasileira”, versão preliminar; e, para a metodologia usada para a mensuração do impacto ver: Martínez Fritscher, André; Maria Cristina Mac Dowell, Soraya Ferreira e Ricardo Gazel (2020). A modernização fiscal dos estados brasileiros e seu impacto arrecadatório e econômico: o caso do Profisco”.
A equipe de desenho e implantação do programa Profisco é composto por Maria Cristina Mac Dowell, Patricia Bakaj, Ana Lucia Dezolt, Soraya Ferreira e André Martínez Fritscher.
[2] É uma linha de crédito de longo prazo, onde os beneficiados podem usar para financiar projetos, com autorização do BID. Os projetos específicos têm tempos de processamento mais curtos.
[3] O PROFISCO do Governo Federal foi executado pelo então Ministério da Fazenda que incluiu ações de seu Programa de Modernização Integrada do Ministério da Fazenda (PMIMF).
[4] O SPED incluiu também a Escrituração Fiscal Digital (EFD, arquivo digital de escriturações de documentos fiscais, bem como de registros de apuração de impostos das operações e prestações praticadas pelo contribuinte e enviado mensalmente à autoridade e serve para o cálculo e controle de pagamento de impostos.) do ICMS e IPI e a Escrituração Contábil Digital (ECD) que substitui o livro contábil de todas as empresas do país de papel a uma versão digital.
[5] http://www.nfe.fazenda.gov.br/portal
[6] A substituição tributária é um regime onde o recolhimento do ICMS é feito por uma empresa de toda a cadeia, “substituindo” a responsabilidade de fazê-lo de todas as empresas envolvidas. Isso facilita a fiscalização, porque ela se concentra em poucas indústrias/empresas.
[7] O mesmo estudo lembra que menor formalidade impulsa a produtividade, os trabalhadores têm seus direitos respeitados, a experiencia de consumo melhora em qualidade e segurança, além de que fomenta a legalidade, já que produtos ilegais tem menos canais de distribuição.
[8] Para um resumo da evidência na América Latina do efeito da digitalização dos documentos fiscais, Karla Hernandez e Juan Robalino (2018) Evidencias del Impacto de la Facturación Electrónica de Impuestos en América Latina em Alberto Barreix, Raul Zambrano (editores). Factura electrónica en América Latina, BID e CIAT.
*Agradecemos os comentários de Carola Pessino e Romina Nicaretta
Susana Soares says
Parabéns pelo exitoso trabalho e pela significativa presença de técnicas, rara em organizações governamentais!