Desde a pandemia, o serviço de justiça na América Latina e no Caribe tem estado no olho do furacão, principalmente por oferecer serviços lentos e insuficientes para casos urgentes, o que afetou significativamente os grupos mais vulneráveis. De acordo com o World Justice Project, a América Latina e o Caribe são a segunda região onde a justiça civil sofre atrasos injustificados e seus sistemas penais são os menos eficazes do mundo.
A transformação digital da justiça possibilita o enfrentamento desses problemas, garantindo o devido acesso aos serviços e melhorando a possibilidade de atendimento daqueles que demandam proteção judicial de seus direitos. Um dos exemplos bem-sucedidos é o da Espanha, país reconhecido por ter implementado sucessivas estratégias de transformação digital da justiça, em conjunto com a adoção de um quadro legal para acompanhar este processo, a definição de um modelo de governança institucional, a implementação tecnológica e a gestão da transformação.
O Ministério da Justiça da Espanha e o BID estão trabalhando para reforçar a troca de experiências e facilitar o acesso às melhores práticas na região. Esse interesse comum se concretizou em 2021, com a assinatura de um Memorando de Entendimento que define o apoio de ambas as instituições para melhorar os serviços de justiça na América Latina e no Caribe.
A partir daí, países como Brasil, Colômbia, Peru e Panamá, entre outros, reconheceram as vantagens da justiça digital e, com o apoio do BID, estão implementando reformas nesse sentido.
Como marco notável, em outubro de 2022 foi realizada em Madri a primeira edição da jornada para troca de experiências “Rumo a uma justiça digital inclusiva e sustentável”. Participaram do encontro autoridades do poder judiciário, ministérios setoriais e responsáveis pelas áreas tecnológicas da Jamaica, Brasil e Bolívia.
Durante uma semana, os representantes regionais e seus pares na Espanha participaram de workshops práticos e visitas às principais instituições que lideram a transformação digital da justiça na Espanha, para conhecer em primeira mão como o sistema está sendo implementado. A delegação manteve intercâmbios com o Conselho Geral do Poder Judiciário, o Tribunal Supremo, o Tribunal Nacional, a Cidade de Justiça de Albacete, a Procuradoria Geral do Estado e o Conselho Geral de Advogados da Espanha. O que podemos destacar dessas trocas?
1) A transformação digital reduz os custos de transação e diminui o impacto ambiental
Com mais de 35 serviços de interoperabilidade, o Ponto Neutro Judicial do Conselho Geral do Poder Judiciário da Espanha concentra informações que garantem a segurança dos dados de mais de 100 organizações públicas e privadas. Segundo a instituição, foram realizados mais de 12 milhões de acessos no último ano, o que gerou economia no tempo de processamento de arquivos e recursos humanos. Por exemplo, um pedido de informação em papel dirigido de um órgão judicial a qualquer outro órgão demora em média 10 minutos para ser elaborado, enquanto os pedidos eletrônicos são gerados num tempo médio de 10 segundos. Outro exemplo de eficiência na prestação de serviços de justiça pode ser observado no processo de apreensão judicial. Graças ao mesmo sistema, a autoridade judiciária competente pode solicitar o embargo das contas correntes em até 48 horas. A evidência de sua eficácia se reflete na execução de mais de 1,6 milhão de embargos somente no ano de 2022. Essa conquista tem contribuído significativamente para a proteção de direitos das pessoas.
Além disso, as comunicações eletrônicas para a troca de informações entre os órgãos judiciais, procuradorias e operadores judiciários evitam deslocamentos desnecessários, ao mesmo tempo que reduzem significativamente o consumo de papel. Segundo o Ministério da Justiça, desde 2010 foram realizadas mais de 800 milhões de comunicações eletrônicas, o que significou uma grande redução de custos e de tempo de locomoção dos profissionais e cidadãos, bem como uma redução do impacto ambiental.
2) A transformação digital da justiça não se restringe ao setor público
A estratégia de transformação digital na Espanha teve como pilar a liderança do Comitê Técnico Estatal da Administração Judicial Eletrônica (CTEAJE). É um órgão de absoluta independência orgânica e funcional, que assegura a coordenação entre as Administrações, no qual participam o Ministério da Justiça, o Conselho Geral do Poder Judiciário, a Procuradoria-Geral do Estado e as Comunidades Autónomas com competências em matéria judicial. Tem por função garantir a compatibilidade e interoperabilidade dos sistemas utilizados na Administração da Justiça, bem como a cooperação entre as diferentes Administrações no âmbito eletrônico. Um exemplo de suas responsabilidades é estabelecer as bases para o desenvolvimento do Sistema de Interoperabilidade e Segurança Judicial.
A participação de todos os envolvidos no sistema judicial tem sido fundamental para garantir a eficácia do serviço de justiça pública na Espanha. Uma das conquistas mais importantes, em colaboração com o setor privado, foi a coordenação entre o Ministério da Justiça e o Conselho Geral de Advogados da Espanha. Devido ao enquadramento legal que obriga este grupo a utilizar meios digitais nas suas relações com a administração de justiça, foram tomadas as medidas necessárias para garantir o sucesso da transformação digital do setor em todo o país.
3) A transformação digital é mais do que tecnologia
A transformação digital da justiça na Espanha não teria sido possível sem a capacitação dos profissionais da justiça e gestão da mudança organizacional. O treinamento é ministrado presencialmente por instrutores formados na sede e virtualmente, através de uma plataforma online que reúne todas as ferramentas de capacitação num único ponto de acesso. Os números falam por si: de acordo com dados do Ministério da Justiça, desde 2016 os funcionários do serviço de justiça espanhol receberam mais de 290.000 horas de treinamento online e presencial por ano, o que foi essencial para fornecer um serviço público de justiça acessível a todos os cidadãos.
A orientação aos usuários tem sido outro programa de sucesso, uma vez que permite aos cidadãos interagir diretamente com a administração de justiça espanhola. A rápida transformação digital precisa evitar a exclusão de quem não possui as competências digitais necessárias para acessar o serviço de justiça. Portanto, é crucial estabelecer medidas efetivas de intermediação que eliminem essa lacuna digital. Na Espanha, cerca de 30% da população está nessa situação. É por isso que a iniciativa da Secretaria de Justiça nos municípios busca formas para que os cidadãos tenham acesso a pontos de atendimento presencial que os conectem aos serviços disponíveis.
4) É preciso promover a transparência e a confiança do cidadão
Além dos desafios de segurança da informação e proteção de dados pessoais, a transparência e integridade nos processos administrativos e judiciais são essenciais para a governabilidade democrática. Por exemplo, na Espanha, o visualizador eletrônico de processos judiciais permite consultar informações sobre processos judiciais de forma rápida e simples e, por sua vez, proporciona maior transparência e rastreabilidade dos órgãos judiciais e promotorias, bem como uma prestação eficaz de serviços de justiça para os usuários.
A transmissão ao vivo das visitas judiciais públicas foi outro avanço em termos de transparência, já que qualquer interessado pode acompanhar de qualquer lugar o desenvolvimento de uma audiência de interesse midiático. Essas iniciativas contribuem significativamente para aumentar a confiança do cidadão nas instituições democráticas e incentivam uma maior participação da sociedade como órgão fiscalizador dos processos judiciais.
Quais são os próximos passos?
A visita permitiu que os membros das delegações adquirissem conhecimento prático em primeira mão, compartilhando experiências diretamente com seus pares. Com isso, eles puderam estabelecer um roteiro para seus respectivos países, com o objetivo de gerar as condições necessárias para avançar no fortalecimento das capacidades institucionais no campo da justiça.
Dado o resultado bem-sucedido da primeira edição, o Ministério da Justiça e o BID organizaram uma segunda jornada, com autoridades judiciais do Panamá, Colômbia, Peru, Chile, Trinidad e Tobago e Uruguai, ampliando assim a participação regional no evento.
Se continuarmos trabalhando de forma colaborativa e compartilhando nossas experiências, alcançaremos uma comunidade consistente entre os principais agentes que lideram a transformação digital da justiça. Por meio da análise e estudo de boas práticas, temos a oportunidade concreta de melhorar a prestação de serviços de justiça na América Latina e no Caribe, com foco no cidadão, promovendo um acesso seguro, sustentável, eficiente e transparente.
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