Estima-se que entre 2012 e 2022 houve um crescimento de 211% na população em situação de rua no Brasil. Entre 2019 e 2022, o aumento foi de 38%, segundo o IPEA. Sendo o Brasil o país com o segundo maior número de vítimas mortais por COVID-19, e face ao aumento da pobreza e à degradação dos laços sociais, mensagens como “fique em casa” ou “lave as mãos” não faziam sentido para a maioria da população.
Foi nesse contexto que a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em parceria com o Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems), e com o apoio do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e da Fundação Rockefeller, elaborou o projeto “Comunidades de Prática em Atenção Primária à Saúde e a População em Situação de Rua no Contexto da COVID-19”.
Desenvolvido ao longo de oito meses, o programa pretendia implementar comunidades de prática em todos os estados brasileiros, buscando fomentar a colaboração e o compartilhamento de conhecimento entre os governos subnacionais, identificando, adaptando e disseminando boas práticas na atenção básica para pessoas em situação de rua.
No total, foram criadas 24 comunidades de prática, com 8 a 30 integrantes. Cada comunidade se reuniu pelo menos seis vezes durante o projeto, cada uma seguindo seu próprio caminho, levando em consideração sua composição, contexto local e momento da pandemia em cada estado.
Os problemas que as comunidades selecionaram para discussão e as soluções propostas foram muito diversos. Eles se concentraram em temas como a imunização; a impossibilidade de acesso às medidas sanitárias, como o uso de máscaras, a falta de acesso a materiais básicos de higiene, a rejeição das medidas pela população e o isolamento de casos positivos; a falta de estratégias municipais de atendimento durante a pandemia; a fragilidade da intersetorialidade, que dificultou o direcionamento dos serviços de saúde para os abrigos por parte da assistência social, entre outros.
Tecnologia a serviço da comunidade de prática
Para auxiliar esse processo comunitário, foi organizada uma plataforma digital no âmbito do IdeiaSUS, desenvolvida pela Fiocruz, que abriga outras comunidades de prática. Um núcleo foi implantado para cada estado, proporcionando aos participantes acesso às memórias dos encontros, materiais de treinamento, registros de boas práticas, vídeos, etc. Esta plataforma ficará como legado do projeto, para que possa ser acessada pessoas interessadas e para que as comunidades mantenham o intercâmbio, mesmo após o término do projeto.
Com a utilização de metodologias ágeis de inovação, diversas comunidades puderam planejar ou mesmo implementar ações para solucionar os problemas elencados:
- Alagoas: Campanhas de vacinação organizadas e implementadas a partir da Comunidade de Prática;
- Rio Grande do Norte: Aperfeiçoamento dos cadastros e esforços dos municípios para completar o ciclo de vacinação, utilizando as reservas técnicas de vacinas;
- São Paulo-SP: Padronização dos fluxos entre os serviços de Assistência Social e Saúde para internação e acolhimento da população em situação de rua;
- Assembleia Legislativa de Pernambuco: Sensibilização das autoridades sobre vacinação e outras providências por meio da realização de audiência pública;
- Goiás: Busca ativa e mapeamento de locais de concentração de moradores de rua para vacinação;
- Mato Grosso do Sul: Mudanças na forma de atender a população em situação de rua nos serviços de Atenção Primária à Saúde, como a explicação dos serviços oferecidos e a avaliação integral das condições de saúde dessa população;
- Prefeitura de Manaus, em parceria com o estado do Amazonas: Compromisso de instalação de banheiros públicos para a população em situação de rua. A comunidade de prática criou uma comissão para acompanhar o projeto.
Outras ações foram planejadas e estão em diferentes fases de discussão com as autoridades locais. O mais importante, porém, foi a possibilidade de reunir um grupo de atores e debater questões relacionadas à população em situação de rua em um contexto de grande isolamento das equipes e falta de dispositivos de coordenação federativa. Assim, tanto a troca entre mediadores como a realização de três encontros nacionais permitiram uma verdadeira troca de experiências e conhecimentos sobre a organização dos serviços.
Trabalho mais articulado
Mais de 75% dos participantes nas comunidades afirmaram ter adaptado ou modificado suas estratégias ou práticas de trabalho em decorrência da participação nas comunidades de prática e 85% afirmaram que seu trabalho está mais articulado e menos fragmentado como resultado da sua participação. A maioria das comunidades pretende continuar trabalhando com essa estrutura. O projeto demonstrou seu potencial para gerar massa crítica, promover trocas produtivas e aplicar soluções ágeis.
O trabalho continua com a ampliação das ações de disseminação de boas práticas – as comunidades sistematizaram mais de 30 delas, que estarão disponíveis na plataforma IdeiaSUS, além de outras ações de comunicação em algumas comunidades. Assim, o trabalho segue entendendo que os serviços de saúde são essenciais. Ao mesmo tempo, é fundamental promover políticas que contribuam para acabar com essa situação inaceitável de pessoas que vivem involuntariamente nas ruas, sem acesso aos seus direitos mais básicos.
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