Como restabelecer a confiança da população e engajá-la para tomar decisões sobre da cidade? Como garantir que um projeto de revitalização urbana incorpore os elementos necessários e seja utilizado pela sociedade na prática? Com esses desafios sob a mesa, o município de Campo Grande percebeu que precisava adotar uma nova abordagem para reativar a área de 94 mil/m2 da antiga rede ferroviária, que se encontrava degradada. O intuito do governo local é que, depois da reativação, este corredor de área verde se torne um espaço público ativo e integrado.
Frente a este cenário, Campo Grande adotou o laboratório cidadão, uma inovação social, que associa o urbanismo tático ao conceito da Hélice Quádrupla – Sociedade Civil, Academia, Iniciativa Privada e Administração Pública – de modo a criar uma massa crítica que seja relevante e que siga gerando impacto e influência junto a outros cidadãos, possíveis usuários dos espaços e programas cocriados.
Conheça o Laboratório de Cidades do BID para a América Latina e Caribe
Convidamos o Leonardo Brawl Márquez, urbanista e membro cofundador do TransLAB.URB para falar com a gente um pouco sobre o contexto dos laboratórios cidadãos e como Campo Grande está utilizando o urbanismo tático.
Como o TransLAB.URB funciona?
LBM: O Laboratório Urbano Efêmero é uma metodologia que desenvolvemos no coletivo TransLAB.URB que busca (re)aproximar a população de uma cidade, do local que receberá recursos para uma requalificação parcial ou total.
A ideia central é ocupar o lugar com um ciclo de atividades teórico-práticas para criar visões alternativas e identificar possibilidades para elaborar intervenções neste espaço de interesse público, fazendo uso da inteligência coletiva dentro de uma lógica de empoderamento do território e desenvolvimento sustentável.
Ao final de um processo com muitas atividades que geram evidências é possível verificar possibilidades para esta área, além de promover o desenvolvimento do sentido de pertencimento e reconhecimento do próprio lugar, possibilitando a identificação de vontades e desejos coletivos para o co-desenho de espaços e programas de interesse público e de uso comum por todos os moradores e visitantes, melhorando a experiência coletiva nesta localidade. A experiência gera relatórios contendo diretrizes espaciais, de usos e programas e autogestão, que devem ser utilizadas nas bases dos programas do projeto executivo de requalificação, garantindo a participação cidadã.
Como um município pode engajar a população?
LBM: Isso é sempre um grande desafio e acredito que tenha muita relação com a reconstrução da confiança. Há pouca cultura de participação efetiva dentro dos governos brasileiros, seja em nível municipal, estadual ou federal. Mesmo em Porto Alegre (onde é nossa base) que tem o histórico do Orçamento Participativo desde 1989, atualmente está desestruturado e consequentemente, desacreditado. O índice de engajamento da população em relação às iniciativas de governos é baixo.
Mas é justamente nesse panorama de falta de credibilidade nos governos que a
inovação social urbana pode ser uma aliada muito potente, justamente porque propõe novas maneiras de conectar a sociedade pelo bem comum.
As propostas mais ousadas, baseadas em participação e transparência conseguem alcançar resultados muito bons, ainda mais quando se aproximam do tripé da arte, ciências e tecnologias. No caso específico dos Laboratórios Urbanos Efêmeros, o fato de ser uma equipe de fora da cidade colabora muito, pois há uma percepção geral de idoneidade, que inclusive aumenta a confiança e a abertura das pessoas para as ideias propostas.
Vocês adotam o urbanismo tático como uma das metodologias do TransLAB.URB. Mas o que é o urbanismo tático e como ele funciona?
LBM: O urbanismo tático é uma abordagem voltada a qualquer pessoa interessada em melhorar a qualidade do espaço público, sejam organizações comunitárias, planejadores ou mesmo engenheiros de trânsito, utilizando intervenções e políticas de curto prazo, baixo custo e escaláveis, visando catalisar mudanças a longo prazo.
As diferentes possibilidades do urbanismo tático variam entre aplicações que permitem experimentar mudanças na cidade por um período determinado, oferecendo uma aproximação ao impacto causado, caso a intervenção fosse, de fato, executada, ou seja, uma lógica de prototipação, mas há também vários casos em que, diante de situações de precariedade do entorno e das necessidades da população, estas buscam soluções a partir de intervenções feitas com materiais econômicos e de rápida implementação.
E qual é o ponto inovador dentro desse conceito?
LBM: O fator inovação varia. Para as populações que convivem com a precariedade e a ausência do Estado, nada é novo, só o nome “urbanismo tático” pois as soluções dadas são parte das suas vidas táticas. Para outros setores da Sociedade Civil acredito que seja o fato de poderem vivenciar o Direito à Cidade, a possibilidade real de interferirem no lugar onde vivem. Já
para os governos a inovação é mais uma inteligência de processo, é a aplicação de metodologia científica ao fluxo dos recursos públicos. Um governo pode prototipar uma solução e verificar seu funcionamento, realizar ajustes e só então partir para a aplicação final, com mais garantias de que a solução escolhida vai atender às demandas.
O que levou Campo Grande a ter um laboratório de urbanismo tático?
LBM: Já havia um contexto de debate sobre a Região Central de Campo Grande, bem como sobre a necessidade de entendimento de seu potencial cultural, valor histórico e de desenvolvimento econômico. Nisso houve a criação de alguns dispositivos legais como a Zona Especial de Interesse Cultural (ZEIC), o tombamento do Complexo Ferroviário nas instâncias municipal, estadual e federal, além de projetos de melhorias dessa região, como o programa Viva Campo Grande (1ª Etapa) e Viva Campo Grande (2ª etapa), ambos convênios entre a Prefeitura Municipal de Campo Grande e o BID.
Em meio a tudo isso o BID apresentou para o Município de Campo Grande o nosso trabalho no Laboratório Urbano Efêmero de São Luís, o Lab SLZ, que realizamos junto à Prefeitura Municipal de São Luís, Maranhão. Isso inspirou o governo local para tentar algo semelhante, visto que ambos projetos tratam de conjuntos de interesse patrimonial e com potencial para novos equipamentos públicos.
Mas é importante salientar que os Laboratórios não são “de urbanismo tático”, pois na realidade tratam da experiência dos Laboratórios Cidadãos, processos mais complexos de repensar a função e relação dos equipamentos públicos com a população, cuja implementação inclui, entre outras tantas abordagens e ferramentas, o urbanismo tático.
Quais são os três elementos que os gestores públicos precisam considerar para implementar esse tipo de solução?
LBM: De forma bem pragmática eu diria que é necessário a transparência dentro de todo o processo, facilitando a compreensão dos fluxos de decisão dentro da administração pública. Depois creio que seja a autonomia para o processo, de modo que a experiência, que tem caráter efêmero, possa ser profunda, sem entraves, visando a geração de evidências científicas das atividades realizadas neste lugar de interesse público. Por último cito o compromisso da administração pública de que toda a vivência de um Laboratório Urbano Efêmero seja parte de um processo maior, garantindo que os resultados serão utilizados nas tomadas de decisão finais. Idealmente esse tipo de validação e construção coletiva de espaços públicos deveria se tornar política pública.
Quais são os próximos passos para Campo Grande?
LBM: Estamos finalizando o relatório final e o documentário de todo o processo nas próximas semanas. A ideia é apresentar isso para toda a sociedade de Campo Grande. Após isso, é iniciada a etapa de formatação de toda a documentação para a licitação de projeto e de execução para a requalificação da área de 94 mil metros2 da Esplanada Ferroviária, e nesse processo as diretrizes resultantes do laboratório serão parte do material que guiará as propostas.
Quais são os principais desafios e conquistas que um município enfrenta ao pensar o planejamento urbano?
LBM: Acredito que o tema do planejamento tem que ser revisitado aqui no Brasil. A concepção da tomada de decisão em gabinete apenas por políticos e/ou técnicos das secretarias já não dá conta da complexidade da urbanização das cidades brasileiras.
A inteligência coletiva é uma aliada, não pode ficar de fora da conta, afinal, problemas complexos requerem soluções potentes, e quanto mais mentes ajudando, maiores as chances de nos aproximarmos de projetos que atendam as demandas.
A participação precisa evoluir muito. Por exemplo, as audiências públicas são formatos obsoletos, pois a população apenas assiste apresentações de projetos e em raríssimos casos pode opinar, geralmente respondendo perguntas pré-estabelecidas.
A sociedade quer ser convidada para formular as perguntas, e este é o ponto central: não apenas participar, mas colaborar.
É complicado quebrar paradigmas, mas é possível, e quando isso acontece os benefícios são enormes.
Por aqui no TransLAB.URB a gente sempre fala que quando os governos começarem a incluir no cronograma a etapa de desenho de processos participativos as mudanças serão rapidamente percebidas por toda a sociedade, inclusive quando começarmos a pensar num planejamento urbano que não peque pelo excesso, e sim que proporcione espaço para a espontaneidade das pessoas que desejam se conectar com a produção das suas cidades.
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