Especialistas compartilham que ações gestores públicos podem priorizar para romper o ciclo dessa violência
200 mulheres foram assassinadas nos primeiros 64 dias de 2019 no Brasil. A média é de 5,31 casos por dia, ou um caso a cada quatro horas e 31 minutos, de acordo com levantamento realizado pela Universidade de São Paulo.
O panorama do feminicídio no Brasil é preocupante, e por isso, foi tema de um encontro promovido pela iniciativa de Diversidade e Gênero da representação do BID no Brasil no Mês da Mulher, com a presença da delegada chefe da Delegacia Especial de Atendimento à Mulher do DF, Sandra Melo, e do professor Welliton Caixeta, da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Os convidados esclareceram dúvidas sobre feminicídio, falaram sobre questões histórico-culturais da violência contra a mulher, além dos desafios para os gestores públicos implementarem políticas públicas.
Como se inicia o ciclo da violência contra a mulher e como rompê-lo? Como mudar a cultura do medo, do silêncio?
SM: Há muito tempo eu digo que essa violência é cultural, mas hoje já a considero histórica. Na verdade, vê-se no Brasil uma estrutura social que privilegia muito o papel do macho, do que é masculino, colocando a mulher sempre em segundo plano no que diz respeito à sua visibilidade, seus direitos e suas escolhas. Ao contrário do que a maioria pensa, na minha opinião essa violência não é desencadeada pelo álcool, pela droga, pelo desemprego ou outros fatores de desajuste social, mas sim pelo conflito que o masculino tem em relação a esse feminino. Estamos observando que o feminino está se empoderando e, mais ainda, se apoderando daquilo que são seus direitos e isso tem gerado conflitos. A violência contra a mulher, no seu início, passa quase desapercebida devido aos preconceitos culturais da nossa sociedade, mas aos poucos torna-se abusivo tolhendo o direito da mulher de ir e vir, de estudar, de crescer profissionalmente, etc. Esse tipo de violência tem crescido ao longo dos últimos anos e culminado nos casos de feminicídio que presenciamos.
Eu considero a Lei Maria da Penha um divisor de águas para a sociedade brasileira. Essa lei trouxe novas ferramentas para o estado abordar problemas há muito existentes e inova quando traz o problema a público. Como se sabe, a lei surgiu a partir de um caso emblemático de violência contra a mulher que representava a situação de milhares de mulheres brasileiras, além de tornar evidentes a inércia do estado e o preconceito contra a mulher. Há pouco tempo, mais de 60% dos casos de violência doméstica contra a mulher não eram notificados. Hoje, segundo as últimas estatísticas do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 52% dos casos já são notificados. Vale lembrar que esse número se refere apenas à violência doméstica, porque a violência sexual ainda é muito pouco notificada. O mais importante é que atualmente a sociedade brasileira já entende que esses comportamentos têm raízes histórico-culturais, e não são apenas consequências de um momento de fúria ou de desajuste social.
WC: Eu concordo com o que foi dito e gostaria de acrescentar que estamos falando de relações sociais construídas dentro da nossa cultura que é patriarcal, misógina e machista e que privilegia a posição do homem em detrimento a da mulher. A violência contra a mulher está bastante associada à essa estrutura social e o modo como são construídos os papéis sociais do que é masculino e do que é feminino. Os vários jargões e padrões impostos pela sociedade fragilizam as identidades de gênero, especialmente a masculina, obrigando o homem a se afirmar, muitas vezes de forma violenta. Há evidências que a violência contra a mulher não ocorreu de maneira discreta ou esporádica, mas de forma contínua ao longo dos séculos, e tem o feminicídio como sua última etapa. Para romper esse ciclo são necessárias mudanças no plano cultural, educacional e, especialmente, é preciso dar visibilidade ao problema. A visibilidade, além de tornar a questão pública, conscientiza a sociedade e facilita a busca por soluções. A implementação de políticas públicas também é fundamental para gerar estatísticas oficiais e iniciar uma abordagem mais institucional sobre o caso.
“Há pouco tempo, mais de 60% dos
casos de violência doméstica
contra a mulher não eram notificados.
Hoje, 52% dos casos já são notificados.”
Por que é tão importante termos uma lei de feminicídio específica para as mulheres?
SM: Porque as estatísticas demonstram que as mulheres são muito mais vulneráveis a esse tipo de violência. A mulher é assediada no transporte público, no seu ambiente de trabalho pelo superior hierárquico, ela é ameaçada quando opta pelo fim de um relacionamento abusivo, enfim: a resposta é matemática.
WC: Vale lembrar ainda o sentimento cultural de posse que o homem tem em relação à mulher. Em minha pesquisa nos últimos anos eu ouvi homens que, em suas palavras, violentavam suas esposas fisicamente ou psicologicamente por que ela teimou, ela não obedeceu, etc. A Lei do Feminicídio ajuda a romper com esse estado de coisas e dar visibilidade ao problema.
Feminicídio é uma questão de gênero, saúde e é um problema de todos. Quais seriam as ações prioritárias que um gestor público poderia tomar para combater esse crime não só na área urbana, mas também rural?
SM: Quando analisou o caso Maria da Penha, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos fez uma série de prescrições para que o Brasil não fosse levado à corte pela inércia demonstrada no caso. A principal delas consistia em criar uma estrutura institucional adequada e integralizada com serviços especializados de atenção à mulher: delegacias, creches e hospitais especializados, por exemplo. Além disso, exigia a capacitação de agentes públicos capazes de compreender de maneira abrangente e livre de preconceitos o papel da mulher na sociedade. Por fim, solicitava a ampla divulgação desses serviços e de campanhas de conscientização para o problema.
E quais são os desafios que os gestores públicos encontram nesse caminho?
WC: A formação dos profissionais especializados é um grande desafio. Acho que a mudança de perspectiva da sociedade como um todo é o maior desafio nesse contexto.
SM: Eu fui diretora da Academia de Polícia do Distrito Federal e posso afirmar que as questões de gênero fazem parte dos cursos de formação e aperfeiçoamento da instituição. Na DEAM (Delegacia Especial de Atendimento à Mulher), por exemplo, os profissionais são constantemente lembrados dos protocolos que devem ser seguidos para que ninguém seja pego desprevenido ou desinformado nessa questão.
Esses protocolos são nacionais ou são utilizados somente aqui no DF?
SM: Infelizmente não são nacionais. Na DEAM há protocolos para atendimento à violência doméstica e familiar, para atendimento à violência sexual, para atendimento a crimes cibernéticos e para a investigação do feminicídio. Hoje, o trabalho de investigação em crimes contra a mulher requer um tratamento diferenciado para que seja eficaz e atenda às expectativas das mulheres que buscam uma solução rápida para essa situação que lhe traz tanto medo e sofrimento.
Recentemente foi aprovado o decreto que facilita a posse de armas de fogo no Brasil. Vocês acreditam que isso pode elevar o número de casos de feminicídio e suicídios no país? Qual o impacto desse decreto para as mulheres?
SM: É preciso lembrar que para conseguir posse de arma de fogo será necessário treinamento especial, uma exigente avaliação psicológica e demonstração clara de necessidade. Homens e mulheres terão direito à posse de armas e não podemos julgar, a priori, como será o impacto desse decreto. Grande parte dos casos de feminicídios ocorrem pelo uso de armas brancas como facas, chaves de fenda, etc. Estando capacitada para atirar, a arma pode ser um instrumento de proteção da mulher.
WC: Concordo com a Dra. Delegada quando observa que os crimes de feminicídio são praticados de maneira muito específica: uso de paus, pedras, enforcamento, etc. Entretanto, tendo a concordar também com pesquisas americanas que revelam que quanto maior o número de armas em circulação em um ambiente social, maior é o número de crimes observados. Embora não haja pesquisas específicas para os crimes de violência contra a mulher, acredito que uma maior circulação de armas de fogo no país tenderia a aumentar o número de ocorrências desse tipo de delito. ■
Estatisticamente os dados são assustadores!
Com a evolução rápida da sociedade as mulheres com certeza são a parte mais vulnerável historicamente, principalmente levando em consideração sua vasta capacidade de crescimento intelectual e social.
Obrigada por abordar de forma clara e com muito zelo este assunto tão delicado, histórico e real.
Parabéns! Matéria super interessante! Por mais matérias assim! Tema que precisa ser explorado nos dias atuais!
Olá Marinalda, obrigada por acompanhar o Ideação! Concordo com você que este tema precisa ser falado em todas as esferas. Um abraço!
Tema importantíssimo a ser abordado! Parabéns!
Nossa, compartilhando agora mesmo! Os dados são assustadores, mas acredito que essa lei consiga diminuí-los!. Campanhas podem ajudar as mulheres a buscarem proteção e defesa própria. É um problema histórico, mas hoje podemos reunir ferramentas que nos ajudarão nesse assunto tão falado e polêmico. Pode ser fácil para quem está de fora, mas para quem o vive, não… Sim, à lei! Parabéns pelo belíssimo texto!
Oi Kelly! Que bom que você gostou da nossa entrevista. As leis Maria da Penha e do Feminicídio fortalecem a nossa voz e puni o agressor. Quanto mais nos posicionarmos e entendermos que essa é uma questão de tod@s conseguiremos romper com o ciclo da violência. Caso te interesse, neste post aqui falamos sobre quatro iniciativas que trabalham no combate a violência contra a mulher e na promoção do bem-estar social: https://blogs.iadb.org/brasil/pt-br/como-parar-o-relogio-da-violencia-contra-a-mulher/ . Bom, continue acompanhando e interagindo com a gente aqui no Ideação. Um abraço!
Nossa, compartilhando agora mesmo! Os dados são assustadores, mas acredito que essa lei consiga diminuir esses números. Campanhas podem ajudar as mulheres a buscarem proteção e defesa própria. É um problema histórico, mas hoje podemos reunir ferramentas que nos ajudarão nesse assunto tão falado e e polêmico. Pode ser fácil para quem está de fora, mas para quem vive, não… sim, a lei! Parabéns pelo elíssimo texto!
Excelente post. Muito relevante para o momento que vivemos no país pois alerta para a questão da violência contra a mulher e amplia a discussão sobre o tema ouvindo entrevistados com diferentes opiniões sobre o assunto.
Olá Nilton! Obrigada pelo seu comentário e continue seguindo a gente aqui no Ideação. Um abraço!
Excelente entrevista!
As perguntas foram elaboradas com muita objetividade e clareza, abordando o assunto de forma direta e abrangente., viabilizando as respostas e argumentos dos entrevistados.
O texto ficou conciso, coerente e esclarecedor.!
Oi Socorro, que bom que você gostou da entrevista. Se puder, compartilhe com a sua rede. Continue acompanhando a gente aqui no Ideação! Abraço!