Paula Ellinger da Fonseca**
Você se lembra da sua infância? Eu recentemente lembrei da minha. Morava na zona rural de uma cidade serrana do Rio de Janeiro. Todas as noites ia dormir com barulho de sapos e medo de que houvesse cobra debaixo da cama. O terreno da minha casa era bem demarcado, mas meus vizinhos não eram gente – eram floresta. Algumas vezes me aventurava no mato. Preparava uma mochila com tudo o que poderia precisar e entrava corajosa pela mata. O entusiasmo durava pouco – ao primeiro som desconhecido, corria de volta para casa. A floresta me fascinava e me amedrontava.
Há alguns anos voltei para visitar aquela casa. O portão continuava igual, mas nos terrenos vizinhos agora habitava gente. Meu coração apertou. Aquelas construções tinham levado meus mistérios de infância. E, pior, eu tinha certeza de que não era a única que sentia esse tipo de perda. Atualmente, restam apenas 22% da Mata Atlântica e os outros biomas do Brasil seguem caminho parecido: cerca de 20% da Amazônia e quase metade do cerrado já foram derrubados[1]. Os números podem ser frios, mas por trás deles há vida. Hoje, 934 espécies de fauna e flora estão ameaçadas no Brasil[2]. O desmatamento impacta também o ciclo hidrológico, deixa as populações mais vulneráveis e contribui significativamente para as mudanças climáticas (representa 61% das emissões brasileiras de GEE[3]), além de exacerbar os próprios impactos negativos da mudança do clima[4] sobre as florestas. As causas da derrubada vão muito além da construção de casas e incluem principalmente conversão de solo para agricultura e pecuária, mineração, obras de infraestrutura[5], e por aí vai.
O cenário é assustador, mas por sorte não é assim em todo lugar. Semana passada visitei uma comunidade que se desenvolve de modo diferente. Foi na Bolivia, quase na fronteira com o Acre. A terra é coberta por vegetação natural e administrada de forma comunitária. Dinheiro eles fazem com a floresta – extraem borracha da seringueira e castanha da castanheira. Recentemente começaram a gerar renda também com criação de peixes e aos finais de semana recebem comunidades vizinhas para celebrar festivais gastronômicos. A tecnologia para criar os peixes foi importada do Acre e já deu tanto resultado que em menos de um ano o lucro foi reinvestido para ampliar a produção.
O que mais me impressionou, porém, não foi a economia no sentido de geração de renda, mas economia no sentido etimológico da palavra, de administração da casa. Preocupada com as futuras gerações, a comunidade doou uma parte da terra florestada para as crianças. O Bosque de los Niños[6], ou BONi, é gerenciado pelos pequenos sob a liderança de um presidente eleito. As crianças varrem as trilhas, identificam as árvores e guiam os turistas pela floresta, explicando tudo o que habita ali. No meio da trilha, perto de alguns cipós, construíram um ponto de apoio onde se encontram diariamente para brincar. Para o futuro, o presidente do bosque sonha em completar a magia do lugar com balanços de pneus reciclados.
Visitar o Boni me levou de volta à minha infância e à relação que desejei ter, mas não tive com a floresta: cuidado, ao invés de medo; casa, ao invés de terra alheia. O conceito é simples, pedagógico, e estranhamente inovador: deixemos que nossas crianças cuidem hoje da terra que herdarão amanhã.
* Este post foi um dos vencedores de concurso promovido pelo blog Hablemos de Cambio Climático, publicação do BID destinada ao debate sobre meio ambiente e sustentabilidade
* *Paula Ellinger da Fonseca, bacharel em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB) e mestre em desenvolvimento local e regional pelo Institute of Social Studies (ISS), Paula é coordenadora de programas na Fundación Avina desde 2011 para as estratégias de Amazônia e Mudanças Climáticas. Anteriormente foi analista ambiental no Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) e consultora para Global Witness. Fotógrafa e escritora, Paula mantém o blog http://porumcaleidoscopio.blogspot.com.br
[1] http://seeg.observatoriodoclima.eco.br/index.php/page/20-Mudan%25C3%25A7as-de-Uso-da-Terra
[2] http://cmsdocs.s3.amazonaws.com/summarystats/2014_2_Summary_StatsPage_Documents/2014_2_RL_Stats_Table5.pdf
[3] http://seeg.observatoriodoclima.eco.br/index.php/page/20-Mudan%25C3%25A7as-de-Uso-da-Terra
[4] http://www.ipcc.ch/pdf/assessment-report/ar5/wg2/WGIIAR5-Chap27_FINAL.pdf
[5] http://raisg.socioambiental.org/system/files/AmazoniaBajoPresion_21_03_2013.pdf
[6] http://www.oecoamazonia.com/reportagens/bolivia/263-criancas-cuidam-de-floresta-na-bolivia
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