O acesso a creches pode influenciar o desenvolvimento geral das crianças ao longo dos anos, especialmente em seu desempenho escolar? Para responder a essa pergunta, pela primeira vez no mundo, uma avaliação experimental de médio prazo foi conduzida sobre os impactos de um programa de provisão de creches públicas em grande escala. Os achados deste estudo inédito, realizado em bairros de baixa renda da cidade do Rio de Janeiro, refletem positivamente na frequência e no desempenho acadêmico e são relevantes para os debates da região sobre políticas de expansão de creches.
O caso do Rio de Janeiro e as creches
Para entender como foi possível conduzir um experimento com análises de dados tão grandes e por tanto tempo, precisamos entrar em uma máquina do tempo e viajar de volta a 2007. Na época, o Rio de Janeiro tinha uma população de aproximadamente seis milhões de pessoas, das quais 7% eram crianças de 0 a 4 anos.
Embora o governo brasileiro tenha instituído o acesso gratuito às creches públicas como um direito social fundamental, na prática não havia vagas suficientes para atender integralmente a demanda, de fato, nos bairros de baixa renda do Rio de Janeiro, havia apenas 244 creches para cuidado de crianças de 0 a 3 anos. Nos locais em que o número de vagas disponíveis fosse menor do que o número de inscrições, a Prefeitura concordou em realizar um sorteio para destinar as vagas disponíveis. Assim, 10.000 das 24.000 crianças que se inscreveram para o período de 2008 foram selecionadas aleatoriamente. É aqui que começa a linha do tempo para os fins da pesquisa, onde dois grupos foram estudados: o grupo de tratamento (ganhadores da loteria) e o grupo de controle (perdedores).
Embora os registros escolares de alta qualidade estivessem disponíveis nos níveis municipal, estadual e nacional, infelizmente nenhum identificador administrativo único estava disponível para vincular todos os registros individuais das crianças às informações existentes em diferentes momentos. Embora as informações estivessem disponíveis, os registros não permitiam rastrear todas as crianças à medida que cresciam, para entender se o acesso a creches desde cedo se traduzia em melhores resultados escolares mais tarde na vida. Além disso, nem todas as crianças que frequentavam creches continuaram seus estudos na rede pública brasileira, pois saíram do país, para escolas particulares ou não, de forma que seus resultados foram perdidos. Com isso, perdemos o controle de aproximadamente 20% das crianças que originalmente participavam do sorteio e esse foi o principal desafio do estudo, que durou 10 anos.
O projeto fazia parte do Fundo de Inovação para o Desenvolvimento da Primeira Infância, que possibilitou o trabalho multidisciplinar de uma equipe de pesquisadores na análise de milhares de registros escolares de crianças de 0 a 3 anos em dezembro de 2007 (quando participaram do sorteio de acesso às creches), e com idade entre 11 e 14 anos em 2018.
A análise desses dados marcou um ponto na história, pois é a primeira avaliação experimental mundial dos impactos de médio e longo prazo de um programa público de creches em larga escala.
Principais resultados em 10 anos
O grupo de pesquisadores avaliou o impacto de frequentar uma creche pública – entre 0 e 3 anos de idade nos resultados escolares ao chegar ao ensino fundamental, sendo este um resultado de médio prazo, levando em consideração a frequência escolar, notas em testes em todas as disciplinas e resultados no teste padronizado Prova Rio aplicado na terceira série do ensino fundamental, tudo isso para diferentes idades. Além disso, avaliou-se o impacto de ganhar na loteria por frequência à creche na primeira infância, sendo esse o desfecho a curto prazo.
Os resultados sugerem que:
• O sorteio teve um impacto positivo nas taxas de matrícula em creches e no número de anos que as crianças frequentaram a creche durante a primeira infância, indicando que ganhar na loteria foi um incentivo eficaz para os pais decidirem usar creches.
• Ganhar na loteria para creches teve um efeito positivo na frequência com que as crianças frequentavam a escola primária durante o ano letivo.
• Ao contrário das meninas, os meninos parecem se beneficiar ao ganhar na loteria em termos de notas gerais e notas de português no teste Prova Rio.
Considerando o efeito inegável que o sorteio teve sobre a frequência de creches, é importante destacar os benefícios que surgem quando crianças de 0 a 3 anos recebem serviços de qualidade em creches como: alimentação nutritiva, serviço de saúde gratuito, estimulação precoce, brinquedos e atividades para estimular o desenvolvimento cognitivo e psicomotor e materiais sobre práticas parentais positivas. Da mesma forma, há estudos na região que sustentam o fato de que a expansão das creches tem impacto no aumento do emprego de mães ou cuidadores. Este conjunto de variáveis do início da vida é decisivo para o desenvolvimento e a acumulação de capital humano ao longo do tempo.
No cenário oposto, vemos que a situação de pobreza poderia afetar o crescimento e desenvolvimento durante a primeira infância, e estas desvantagens são suscetíveis de influenciar a educação das crianças, emprego e saúde mais tarde na vida. Lacunas de equidade persistentes no acesso a serviços de acolhimento de crianças e a qualidade do ambiente doméstico afetam principalmente as populações mais vulneráveis.
O estudo em números
A necessidade de avaliar o desenvolvimento infantil a médio e longo prazo
Entre os esforços da América Latina e do Caribe para expandir a cobertura dos serviços para a primeira infância, o Brasil é um dos mais notáveis. Como parte de sua política de desenvolvimento da primeira infância na última década, o país ampliou o acesso a creches para atender a população mais carente. No entanto, era essencial saber se esses esforços estavam tendo resultados no desenvolvimento das crianças a médio e longo prazo e se eles impactavam seu desempenho escolar mesmo 10 anos depois. A resposta deste estudo é sim, e valida o que o Brasil fez como pioneiro na região.
As evidências mostram que as experiências e intervenções nos primeiros anos perduram ao longo da vida. No entanto, quando estamos atrasados, validamos o ciclo da pobreza e da exclusão. É por isso que as intervenções de políticas que promovem o desenvolvimento durante este período favorecem a equidade e o crescimento saudável das crianças, para que possam ter mais oportunidades no futuro.
Este projeto foi financiado pelo Fundo de Inovação para o Desenvolvimento da Primeira Infância (ou Fondo de Innovación para el Desarrollo Infantil Temprano – DIT – em espanhol), com a coordenação do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o apoio da Fundação FEMSA, da Fundação María Cecilia Souto Vidigal, Open Society Foundations, Porticus y la Fundação Bernard van Leer.
No Fundo de Inovação para o Desenvolvimento na Primeira Infância (DIT), continuaremos a trabalhar nos próximos anos com a firme intenção de inovar para obter serviços de DPI de qualidade. Para ficar conectado e aprender mais sobre este trabalho inovador, convidamos você a explorar o Centro de Conhecimento de Desenvolvimento da Primeira Infância, onde encontrará detalhes de outros projetos, recursos e informações úteis sobre DPI.
Leave a Reply