Daniela Carrera-Marquis*
O objetivo de alcançar centros urbanos sustentáveis na ALC está relacionado diretamente com a capacidade de consolidar a classe média na Região. O investimento em infraestrutura sustentável é imprescindível. Entretanto, a consolidação da sustentabilidade se fundamenta no nível de estabilidade dessa classe. Uma classe média forte promove o desenvolvimento de capital humano, consolida instituições políticas e econômicas, cria demandas consistentes por bens e serviços e gera constante riqueza, inovação e prosperidade. Crescimento econômico, estabilidade política e governança mais forte, inclusão e sustentabilidade giram em torno de uma classe média forte. Trata-se de uma contribuição fundamental para a formação de um ambiente favorável da comunidade urbana.
Tudo indica que a América Latina entrou em um ciclo econômico caracterizado por um menor crescimento e uma maior volatilidade no âmbito econômico, social e político. Por ele, uma acertada valorização do papel da classe média se torna ainda mais relevante. Trata-se de um momento especialmente importante no que concerne à permanência do que foi criado pela classe média. Não fazê-lo, poderia resultar em uma perda importante do valor social, económico e político dessa classe; e em uma limitação da sua futura geração. Pelo menos três características fundamentais da nossa região ressaltam a importância da classe media: (i)alta taxa de urbanização da nossa região – 84% da população vive em áreas urbanas; (ii) apesar do crescimento ocorrido na última década, é uma região com alta taxa de desigualdade, com o coeficiente Gini de 0.52 (Banco Mundial, 2013); e um atraso na produtividade. Segundo o Banco Mundial [1], na América Latina a classe média cresceu; mais de 50 milhões de pessoas saiu da pobreza, o que constitui um aumento de mais de 50% em dez anos e representa em torno de 30% da população [2]. Uma grande conquista: a última década foi cenário da criação de uma nova classe média. Um importante segmento da população que ascendeu da pobreza, e agora tem uma maior capacidade de produção e consumo [3]. Esta capacidade representa maior acesso a bens e serviços que antes estavam fora de alcance. O que constitui em si, um avanço muito importante, uma tremenda conquista de desenvolvimento.
A nova classe media da América Latina e Caribe ampliou seu acesso a serviços públicos como educação e saúde, sua capacidade de compra e produção em determinado nível e muitos migraram para a economia formal. Entretanto, o consumo é somente um dos principais parâmetros que definem a classe média. Outras dimensões socioeconômicas incluem a ocupação, a educação e os valore cívicos, culturais e políticos. Vale ressaltar sua capacidade de inovação, de fortalecimento da geração de renda, de internalizar plenamente o significado de cidadania e de promover o exercício dos princípios democráticos. Estes últimos legitimam em grande parte a permanência da nova classe média e assim a possibilidade real de consolidar um caminho de desenvolvimento sustentável em nossas cidades e globalmente na região.
As características da visão de futuro da classe média definem seu papel central nas sociedades modernas. O acesso a uma melhor educação abre as portas do emprego para gerações atuais e futuras. O acesso a serviços públicos de qualidade garante uma confiável fundação para o bem comum; onde a prosperidade pode fomentar-se e a dependência dos subsídios possa diminuir. Uma sociedade inclusiva próspera valoriza sua liberdade, sua equidade, seu potencial econômico, seu meio ambiente. Durante a última década a América Latina e Caribe não viu apenas o aumento no crescimento e no emprego, mas também uma matriz de políticas públicas (incluindo programas de empréstimo consignado – CCTs) voltados para diminuição da pobreza e desigualdade. Estes programas têm sido constantemente avaliados e possuem vários graus de sucesso. Duas preocupações importantes têm sido ressaltadas com frequência por analistas e políticos: a importância de garantir uma saída estratégica para evitar a dependência de longo prazo do Estado e o impacto fiscal desses programas.
A transformação das sociedades latino-americanas, de concepções autocráticas para sistemas democráticos e de economias com altos índices de informalidade para economias formais e mais produtivas implicam o desenvolvimento de uma classe media mais forte. O poder orientador do papel do Estado de influenciar as forças do capitalismo, para gerar o crescimento econômico necessário para reduzir a desigualdade e promover a inclusão social, se alimenta, em alto grau, da capacidade da classe média.
Estas são algumas das razões pelas quais poderia dizer que uma espécie de miragem parece se formar no que diz respeito à desconexão entre a importância social e política da classe média e o caminho até a sustentabilidade e potencialidade na Região. A sustentabilidade e a capacidade de recuperação requerem que enfoquemos o ecossistema socioeconómico e político como um todo. Para isso é importante adotar uma abordagem global e multidisciplinar, e sublinhar o papel do setor social chave – a classe média – que pode participar de maneira primordial na abertura de um caminho ao desenvolvimento sustentável inclusivo.
Para tanto, durante este novo ciclo de desafios socioeconómicos e políticos na Região, a vulnerabilidade da nova classe media não representa somente por em risco esse setor da sociedade, ou uma parte dele, mas de se recair socialmente. Em qualquer sociedade moderna é igualmente importante um eventual declínio na criação dos valores que se encontram na classe média. O crescimento sustentável inclusivo socialmente, se baseia também de maneira fundamental, na existência de uma classe média forte
Em diferentes níveis, vemos isso acontecer na região à medida que os países movem em direção ao desenvolvimento e democracia. Nossa região vivencia contínuos progressos e retrocessos nas duas frentes. Da Argentina ao México, a região vive importantes desafios em termos de baixo crescimento econômico, degradação ambiental, alta desigualdade, instabilidade da classe média, e vulnerabilidade das instituições democráticas. Isso é claramente refletido nas cidades: moradias para os pobres vivendo em favelas, muitas vezes ao lado de áreas abastadas. Muitos mostram sinais de degradação urbana. O que coloca em risco os ganhos econômicos, políticos, sociais e ambientais da região.
No caminho do Aeroporto Santos Dumont até o Morro do Alemão no Rio de Janeiro é possível ver a quantidade de contrastes que traz esta linda cidade. Como em muitas cidades na ALC os pobres e mais vulneráveis vivem geralmente muito próximos dos mais ricos. Num dia especial, durante este trajeto, Murilo, que gentilmente me buscou no aeroporto, falou sobre q quantidade de pessoas que estiveram aqui e como estavam felizes. Ver Michael Phelps ensinar as crianças na piscina de esportes do Centro Comunitário (Vila Olímpica) no Morro do Alemão foi único e inspirador. Foi maravilhoso. Ele foi visto como um símbolo do que é possível com trabalho duro e dedicação num ambiente de apoio. A Vila como símbolo de intervenções pacíficas nas Favelas do Rio de Janeiro. No meu caminho de volta ao aeroporto, Murilo e eu continuamos nossa conversa. Concordamos que foi muito motivador ver as crianças e Michael Phelps compartilhando suas paixões pela natação, e esperamos poder ver mais momentos como esse no futuro. Infelizmente, dois anos depois, em 2014, a violência na região voltou e o trabalho na Vila não era mais seguro. Assim, o projeto que significava tanto para nós, teve que ser transferido para outro lugar. Nós, os que acreditam apaixonadamente na inclusão, no desenvolvimento e na importância de impulsionar novas realizações para esta nova classe média, tivemos que nos adaptar e continuar em outro lugar, enquanto esperamos voltar.
Parafraseando um conceito de capital e fluxos levantado no livro Five Capitals of the Forum of the Future; considero razoável sustentar o uso de nosso capital social, do qual a classe média representa o núcleo, o que deve ser feito ao mesmo tempo em que se preserva este capital – capital intelectual, valores e a capacidade de desenvolver aptidões e riqueza – assegurando assim que futuras gerações percebam a capacidade de geração de renda de tais valores.
*Daniela Carrera-Marquis é Coordenadora para Soluções Financeiras de Projetos Sustentáveis da Divisão de Habitação e Desenvolvimento Urbano do BID, em Washington, DC. Daniela foi Representante do BID no Brasil entre 2012 e 2016.
[1] Augusto de la Torre Jamele Rigolini. World Bank MIC Forum: The Rise of the Middle Class Economic Mobility and the Rise of the Latin American Middle Class (www.worldbank.org/laceconomist).
[2] A definição de classe média é ampla e varia dependendo do momento histórico entre diferentes culturas e depende dos parâmetros socioeconômicos utilizados. Portanto, o tamanho da classe média na região varia dependendo da definição que se utiliza. Em um estudo recente sobre a classe media latino-americana, os autores concluem que entre 40 e 60% das famílias representam a classe média da região. Francesca Castellani, Gwenn Parent, Jannet Zentero. (December 2014). The Latin American Middle Class Fragile After All? IDB WORKING PAPER SERIES No. 557. Inter-American Development Bank.
[3] De acordo com estudo da McKinsey se esperava um importante crescimento do potencial de consumo da classe média ao longo da década. O estudo, baseado em 12 economias emergentes (incluindo os BRICs), indica que em torno de 2 Bilhões de pessoas gastavam aproximadamente $7 trilhões anualmente e se esperava que o nível de gasto alcançaria uns $20 trilhões durante o mesmo período. Quarterly July 2010. Capturing the world’s emerging middle class By David Court and Laxman Narasimhan (http://www.mckinsey.com/industries/retail/our-insights/capturing-the-worlds-emerging-middle-class).
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