Como bem se sabe, a doença COVID-19 é altamente contagiosa e com uma taxa elevada de mortalidade em relação a outras doenças virais similares em grupos de risco. Na América Latina e Caribe (ALC), o primeiro caso de contágio foi registrado no final de fevereiro de 2020 e, até 20 de abril, o número de pessoas contaminadas passava de 100 mil e o de mortos superava 5.300. Esses números, infelizmente, não tardam a se tornar desatualizados. A propagação do vírus, que se iniciou na Ásia e se expandiu rapidamente e com força pela Europa, teve um forte impacto sobre a atividade econômica da região na forma de preços mais baixos das commodities, menor demanda por exportações, fugas de capitais e maiores custos de financiamento.
Para reduzir o contágio e evitar o colapso dos sistemas nacionais de saúde, o distanciamento e isolamento sociais tornam-se medidas essenciais de qualquer estratégia de saúde pública. A grande maioria dos países da ALC já avançou na implementação de medidas de distanciamento social. Em meados de abril, 14 países haviam implementado medidas de quarentena total ou quase total, 9 países tinham restrições severas de circulação e o restante dos países apresentava restrições mais limitadas.
As medidas de distanciamento social, embora sejam essenciais, trazem consigo uma redução muito forte na presença na economia, trabalho e lazer. Isso, por sua vez, gera uma forte queda adicional à de origem externa na atividade econômica, com os efeitos consequentes sobre a sustentabilidade fiscal.
Desafios da COVID-19 para as políticas fiscais na ALC
A COVID-19 apresenta grandes desafios para a ALC em termos dos recursos necessários para combater a pandemia e minimizar os efeitos sobre o crescimento e a sustentabilidade fiscal. Além disso, como bem expressou recentemente o Presidente do BID, Luis Alberto Moreno, a crise “expõe todos os problemas endêmicos da região”.
É por isso que as medidas de política e gestão fiscal estão no primeiro plano das políticas globais para mitigar e reduzir os efeitos da pandemia. Por um lado, é necessário, prioritariamente, que mais recursos orçamentários possam ser direcionados com rapidez para o setor de saúde a fim de atender à demanda aumentada. Os sistemas de saúde da região já enfrentavam sérias deficiências e baixa equidade no acesso a serviços de qualidade e, além disso, não estavam preparados para lidar com pandemias. Isso requer um extenso trabalho e apoio do setor fiscal, inclusive para reforçar os sistemas de compras públicas na emergência e garantir que os recursos estejam bem direcionados e distribuídos geográfica e equitativamente.
Para manter as pessoas isoladas socialmente e, assim, reduzir o contágio do vírus, os países precisam direcionar transferências de recursos volumosas, oportunas e temporárias. Essa necessidade é ainda maior na América Latina, porque mais de 50% da força de trabalho é informal, portanto grande parte dos trabalhadores não dispõe de infraestrutura para trabalho remoto e está fora das redes formais de proteção social, aos quais se poderia fazer chegar seus cheques em forma digital. É necessário atualizar urgentemente os cadastros de beneficiários de programas sociais incompletos, desatualizados e sem cruzamentos automáticos com dados administrativos fiscais que permitam detectar a informalidade e fazer um direcionamento adequado dos auxílios.
Por fim, a gestão macrofiscal tende a ser deficiente em muitos países, que, além disso, têm dívidas públicas vultosas e crescentes e tendem a não poupar em períodos de bonança, o que limita o espaço fiscal para enfrentar a crise. Muitos países não podem, materialmente, fazer frente a demandas tão altas de aumento do gasto público e, com isso, ao déficit e à dívida resultantes; e muitos precisam conseguir relaxar as leis fiscais ou negociar aprovação no Congresso para poder fazê-lo.
Nesse contexto de intensas fragilidades institucionais, a região requer o aprofundamento e coordenação da política e gestão fiscal, incluindo medidas transitórias adicionais tanto para a atenção à pandemia como à pós-pandemia, assim como para o período de transição. Dada a gravidade da crise sanitária e econômica, a boa formulação dessas políticas e sua boa execução tornam-se essenciais. É fundamental que a política e gestão fiscal procurem fazer com que a perda total de atividade econômica e deterioração fiscal sejam mínimas e que se possa retomar em curto tempo o crescimento econômico e a sustentabilidade fiscal.
A política fiscal durante o distanciamento social
Na formulação da política fiscal para o período de duração da pandemia, é preciso ter em mente que grande parte da recessão não é uma consequência indesejada da pandemia, mas uma resposta provocada de política pública para diminuir a presença no trabalho, com o objetivo expresso de salvar vidas. Ou seja, os cidadãos e seus governos decidem pagar o custo de se isolar e sacrificar renda para salvar sua própria vida e a do resto da população. Pela perspectiva econômica, essa decisão é plenamente racional, já que é altamente rentável em termos sociais e justifica um período – limitado – de isolamento e das medidas fiscais que o acompanham, como é mostrado claramente no BLOG de Pessino y Rasteletti.
Tendo isso em conta, é evidente que as políticas fiscais anticíclicas tradicionais de fomento do consumo ou incremento do investimento perdem o sentido no contexto da pandemia, já que é pouco o que se pode fazer para reduzir a recessão econômica durante um período de quarentena geral.
Nessa etapa, a política fiscal deve se centrar em dois objetivos principais:
- Deve destinar recursos suficientes ao setor de saúde para que seja possível atender à emergência sanitária.
- Deve proporcionar “alívio” às famílias, principalmente àquelas mais vulneráveis, incluindo ainda medidas para proteger as empresas empregadoras a fim de evitar demissões em massa. Na formulação dessas políticas de auxílio a famílias e empresas é importante assegurar que os auxílios introduzidos sejam temporários, já que políticas fiscais de auxílio a famílias costumam apresentar dificuldades para ser revertidas.
As medidas para o setor de saúde, para as famílias vulneráveis e para as empresas são importantes não só porque salvam vidas, reduzindo o custo econômico e social da pandemia no curto prazo, mas porque, implementadas a tempo, levam também a uma menor perda total de atividade econômica e deterioração fiscal no médio e longo prazo. Isso porque possibilitam um retorno mais rápido ao crescimento econômico e à sustentabilidade fiscal.
Os países da ALC já estão implementando medidas de políticas nas áreas mencionadas. Como mostra claramente o Quadro 1, a grande maioria dos países anunciou medidas para ampliar o montante de recursos disponíveis para o setor de saúde. Também estão sendo implementadas diversas medidas para o apoio à receita das famílias e à liquidez das empresas.
QUADRO 1. Medidas implementadas na ALC em resposta à pandemia.
Custo dos pacotes econômicos para a pandemia
Embora as medidas anunciadas pelos países da região tenham sido numerosas, o alcance delas, em sua maioria, foi modesto quando comparado ao de países desenvolvidos em que os pacotes de medidas anunciados para combater a crise sanitária e econômica alcançaram um custo médio de 16,3% do PIB, ou mais de 40% do PIB na Itália. Na ALC, ainda que o tamanho dos pacotes de auxílio continue aumentando, o custo deles, tal como foram anunciados, equivale, em média, a uma quarta parte do custo dos pacotes anunciados pelos países desenvolvidos (4,1% do PIB), ou menos sem incluir as medidas de empréstimos às empresas, principalmente a PMEs (2,7% do PIB). Como mostra o gráfico abaixo, há uma grande dispersão no tamanho desses pacotes anunciados pelos países da região, com totais máximos de 15,1% do PIB no Chile, 11,1% no Peru e 8% em El Salvador. Esse gasto é destinado principalmente a proteger a receita das famílias e a liquidez das empresas (3,6% do PIB), mais do que a atender a emergência sanitária (0,5%).
QUADRO 2. Recursos públicos anunciados até 15 de abril para enfrentar a pandemia em % do PIB
É importante mencionar também que o tamanho desses pacotes tende a ser fortemente restringido pelo espaço fiscal dos países. Como mostra o gráfico a seguir, há uma correlação negativa entre o tamanho das medidas de políticas anunciadas pelos países da região e seus níveis de dívida bruta no início da pandemia. Em BLOG DE PINEDA Y VALENCIA é desenvolvida a análise sobre o impacto de todos os choques na atividade econômica, projetando o déficit e a dívida pós-pandemia.
QUADRO 3. Correlação dívida bruta e recursos anunciados para aliviar a pandemia
Política tributária e de gasto público para a crise
Mas, além do aumento do gasto, as receitas tributárias diminuíram como consequência da forte queda na atividade econômica, da queda no preço das commodities e pelas próprias moratórias e empréstimos que foram concedidos às empresas para manter sua folha de pagamento, o que faz com que o espaço fiscal esteja se reduzindo ainda mais. Elevar impostos não pareceria ser uma opção nestas circunstâncias, nem mesmo o uso do imposto inflacionário, que atinge principalmente os pobres, exceto reforçar algo como o IVA digital, como mostram BARREIX et al BLOG, especialmente para a pós-pandemia. Em países com pouco espaço fiscal e baixa capacidade de endividamento, é necessário fazer fortes realocações do gasto público, especialmente de gastos supérfluos como publicidade e outras ineficiências, incluindo a redução temporária de salários no setor público. De fato, pelo menos sete países da região anunciaram a redução temporária do salário ao menos de uma parte dos funcionários públicos de seu país. É de se destacar que medidas desse teor estão sendo tomadas em países desenvolvidos e fiscalmente sólidos, como é o caso da Nova Zelândia.
A gestão fiscal durante a pandemia
Para assegurar que as políticas fiscais formuladas para atender a crise sanitária e econômica cumpram os objetivos estabelecidos, é sumamente importante promover uma gestão eficiente de sua implementação, para que os recursos financeiros cheguem de maneira oportuna e focalizada ao setor de saúde, às famílias mais vulneráveis e às empresas mais afetadas. Para isso, é necessária uma infraestrutura de gestão fiscal que nem todos os países da região têm. Por essa razão, os sistemas e instituições de gestão fazendária tendem a se tornar imprescindíveis para obter uma resposta rápida e eficiente do setor público e evitar que este se torne um gargalo, como ocorreu em crises anteriores.
Os desafios de gestão que se apresentam para implementar políticas fiscais durante emergências são diversos e complexos. A execução de recursos públicos costuma ser retardada por falta de disponibilidade orçamentária e por processos de compras públicas pouco ágeis. Os auxílios às famílias não chegam a tempo por falta de sistemas de direcionamento adequados e por falta de mecanismos de distribuição de recursos transparentes, o que é consequência, em parte, da baixa inserção das populações mais vulneráveis no sistema bancário. Os diferentes níveis de governo não estão suficientemente coordenados, o que leva a duplicações de esforços e a desabastecimentos de insumos essenciais. A isso costuma se somar uma falta de transparência no uso dos recursos disponibilizados para a resposta à crise, o que gera desconfiança dos cidadãos.
Para evitar os problemas mencionados e outros, é importante contar com instituições, políticas, processos e sistemas de informação que sejam flexíveis, eficientes, confiáveis, transparentes e que estimulem a prestação de contas. Enfrentar esses desafios requer a introdução de alterações imediatas na regulação da gestão financeira existente, para tornar mais eficiente a alocação e execução dos recursos públicos. Entre as medidas de gestão mais importante estão as de centralizar, coordenar e divulgar com transparência as compras públicas, incluindo a análise das cadeias de abastecimento dos bens e serviços essenciais. Onde os bens fundamentais são, em sua maioria, importados, também é importante introduzir resoluções ou mudanças de políticas para permitir procedimentos aduaneiros simplificados na importação desses bens. Também pode ser importante centralizar a tomada de decisões para reduzir problemas de coordenação e assegurar a disponibilidade e distribuição eficiente dos insumos entre os órgãos, hospitais e governos subnacionais envolvidos. Vários países da região implementaram esse tipo de medidas. Por exemplo, na República Dominicana e Bolívia, o Ministério da Saúde coordena as respostas do governo e, em Honduras, foi criada uma comissão de emergência.
Transição para a pós-pandemia
À medida que a taxa média de reprodução da COVID-19 diminui como consequência das medidas de quarentena e do aumento da imunidade, o benefício do isolamento começa a diminuir e os custos na atividade econômica a aumentar. Por esse motivo, é necessário planejar uma suspensão paulatina e inteligente das medidas de isolamento social, seguindo as recomendações de epidemiologistas e economistas. Nesse período de transição, diversos setores poderão retomar a produção, ao mesmo tempo em que trabalhadores de menor risco ou imunizados poderão voltar a seus trabalhos e atividades normais. Dessa forma, a atividade econômica retorna pouco a pouco à normalidade, ao mesmo tempo em que continua diminuindo a reprodução do vírus e a probabilidade de que comece uma nova onda.
Nesse período de transição, a política e gestão fiscal devem continuar apoiando as medidas de saúde pública, proporcionando recursos ao sistema de saúde para o acompanhamento e pesquisa de casos de contágios e assegurando a disponibilidade de testes de diagnóstico. Também deverão ser revistas e adaptadas as medidas de auxílio às famílias e às empresas com o retorno gradual da atividade econômica, redirecionando eficientemente as transferências para trabalhadores vulneráveis que ficaram sem renda e interrompendo-as para os que podem ou já conseguiram se reintegrar.
A pós-pandemia
Uma vez passado o período de transição, dados os fortes impactos da crise sanitária da COVID-19 sobre a atividade econômica, as finanças públicas, a pobreza e a desigualdade, serão necessárias políticas de apoio tanto à reconstrução da atividade econômica e social como à recomposição da situação fiscal. Como mostra o Quadro 1, ainda são poucos os países que começaram a planejar (ou anunciar) suas políticas para a pós-pandemia, algo que já deveria estar no radar.
Para promover o retorno ao crescimento com equidade, será preciso formular e implementar planos integrados que sirvam de estímulo econômico e que apoiem as famílias e as empresas mais vulneráveis durante o período de retorno à normalidade. Esses planos deverão levar em consideração as restrições orçamentárias, para não comprometer a sustentabilidade fiscal. Em muitos casos, deverão incluir reformas estruturais que dinamizem a economia desde seus fundamentos e contribuam para melhorar a situação fiscal de médio prazo dos países, tanto do governo central como dos governos subnacionais.
Em outros casos, o esforço poderá se centrar em viabilizar realocações inteligentes do gasto público que incluam eliminações de gastos supérfluos, redução dos vazamentos nos sistemas de transferências e subsídios, combate à corrupção nas compras públicas e equiparação dos salários do setor público aos do privado. Na região, essas ineficiências do gasto público representam, em média, 4,4% do PIB regional.
Nesse período de pós-pandemia será importante também extrair lições aprendidas da pandemia atual, de modo a fortalecer os sistemas de gestão financeira pública para permitir que os países estejam mais bem preparados para enfrentar emergências futuras. Será também importante formular planos de contingência que permitam minimizar o custo humano e não humano das emergências. Além disso, devem-se fortalecer os sistemas integrados de informação digital tributária e social que permitam detectar não só a pobreza, mas a informalidade, ajudando a reduzir a evasão e a direcionar os programas sociais. Os sistemas de compras e de transparência fiscal também deverão ser fortalecidos.
O apoio do BID
Para apoiar rapidamente os países da região, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) elaborou um protótipo de projeto de apoio à formulação de boas políticas fiscais para enfrentar as consequências da emergência do coronavírus. O protótipo, que já foi aprovado pela Diretoria do BID, está estruturado como uma série de duas operações cujas ações de política buscam apoiar os países na adoção de medidas que permitam dar uma resposta no curto prazo aos principais desafios que eles enfrentam para lidar com a crise sanitária e econômica causada pela COVID-19. As medidas da primeira operação estão orientadas principalmente a disponibilizar recursos para atender à emergência sanitária e executá-los com eficiência, bem como a apoiar a renda das famílias e a liquidez das empresas. Além disso, procura-se começar a delinear o plano econômico e fiscal de saída da pandemia. A segunda operação da série visa a promover a recuperação econômica e fiscal pela implementação de políticas de médio prazo para retomar o crescimento com equidade e sustentabilidade fiscal no período pós-pandemia. No Quadro 1 pode-se ter uma visão geral das medidas que são incentivadas e quais delas já foram adotadas pelos países da região.
Nossa região enfrenta uma crise sem precedentes e necessita o quanto antes formular políticas públicas e fiscais efetivas, assegurando rapidamente os recursos necessários para combater a pandemia: salvar vidas e reduzir o impacto negativo sobre a economia, as finanças públicas, a pobreza e a desigualdade. No BID, estamos trabalhando incansavelmente e de mãos dadas com nossos países membros para apoiá-los no desenvolvimento de soluções que sejam eficazes, sustentáveis e que protejam o bem-estar de nossa gente.
Agradecemos a excelente assistência de pesquisa de Cristian Chagalj. Além disso, agradecemos a colaboração de especialistas da divisão fiscal que forneceram dados e medidas dos países incluídos na análise.
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