Pode parecer absurdo refletir calmamente quando o COVID-19 está ganhando uma corrida que vai redefinir nosso futuro. Ficamos surpresos com a sua chegada, apesar das contínuas advertências da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre a influenza e suas possíveis mutações. No passado, as pandemias nos confrontaram com inimigos sorrateiros que, ao custo de grandes perdas de vidas e graves rupturas socioeconômicas, forçaram a humanidade a evoluir, ainda que imperfeitamente. Costumávamos pensar nelas como eventos trágicos da antiguidade ou calamidades confinadas aos países mais pobres. Estávamos errados.
As pandemias se espalharam por uma ampla área geográfica sem distinção de fronteiras ou territórios, com picos infecciosos relativamente curtos, mas com altas taxas de mortalidade. Elas diferem das epidemias por seu escopo mais amplo, embora a sua delimitação não seja simples. O Ebola, cujo vírus afetou a Libéria e outros países da África Ocidental (2014-2016), teria se tornado uma pandemia, mas por um esforço internacional significativo para contê-la. A verdade é que as pandemias sempre flagelaram a humanidade, e o COVID-19 não será a última.
Pandemias na História Humana
Uma das primeiras pandemias registradas foi a peste Justiniana (541-542), com referência ao imperador do Império Romano Oriental ou Bizantino, que afetou a cidade de Constantinopla (Istambul) e se espalhou pela Europa, Ásia e África, exterminando entre 25 e 50 milhões de pessoas. Sua sucessora, a peste negra ou bubônica, causou a morte de cerca de 60% da população europeia no século XIV. Com a descoberta da América (1492), os europeus trouxeram vírus e bactérias mortais como a varíola, o sarampo, a febre tifoide e o cólera, para os quais os povos nativos não tinham imunidade. Ao retornarem, os marinheiros levaram sífilis para a Europa ou, segundo novos estudos, aceleraram sua propagação. A erroneamente chamada gripe espanhola (1918-1920), porque começou nos Estados Unidos, dizimou entre 50 e 75 milhões de almas, e causou mais vítimas do que a Primeira Guerra Mundial (1914-1918).
Outras pandemias importantes foram: as sete versões do cólera (1816-1975), a gripe asiática (1956-1958), a gripe de Hong Kong (1968-1969) e o HIV/Aids (1980-presente). As mais recentes, embora muito menos letais, incluíram: a gripe suína (2009-2010), que infectou mais de 20% da população mundial e causou aproximadamente 200.000 mortes; o SARS, que surgiu na China, espalhou-se por 24 países e matou 774 pessoas (2002-2004); e o MERS, um vírus descoberto na Arábia Saudita em 2012, que causou mais de 850 mortes. Enquanto cada pandemia se espalhou em contextos diferentes, todas elas compartilham semelhanças com padrões esquecidos.
Globalidade, incerteza e “infodemia”
As pandemias ocorrem quando as cadeias de transmissão operam em longas distâncias e cobrem populações muito remotas. A peste negra (1347-1352) entrou na Europa através do sudoeste da Rússia e Crimeia, espalhando-se pelas cidades e vilas ao longo de rotas de comércio e comunicação, tanto por terra como por mar. Hoje, com a crescente mobilidade de pessoas e bens, transporte e viagens internacionais e interação entre cidades, a transmissão global de doenças infecciosas é inevitável. No início, as pandemias compartilham um denominador poderoso: a “incerteza,” que gera complexos processos de desinformação e, potencialmente, bodes expiatórios alimentados por teorias conspiratórias.
A OMS rebatizou esse fenômeno como “infodemia,” o que significa a rápida disseminação de informações poco confiáveis através do uso generalizado das tecnologias de comunicação. Infelizmente, com o tempo a “infodemia” pode se transformar em pânico, ressentimento, violência ou resignação coletiva, impactando a eficácia das medidas de combate ao contágio, bem como a manutenção de atividades essenciais e a ordem social. Portanto, tão importante quanto um esforço internacional concertado (não apenas nacional) para derrotar uma pandemia, é também a utilização e adoção adequada de diversos canais de informação a nível local em suas fases mais críticas para salvar vidas.
A busca de culpados e retaliação
Durante séculos, as sociedades acreditavam que uma divindade irada enviava doenças como punição pela desobediência e os pecados. Para sossegar a ira divina, as comunidades frequentemente buscavam culpados. Um dos mais notórios exemplos históricos de bodes expiatórios surgiu durante a peste negra através da massacre de comunidades judaicas na Europa Ocidental. Outra versão horrível ocorreu quando os mongóis catapultaram cadáveres infectados pela peste bubônica durante o cerco da fortaleza genovesa na cidade de Caffa (Feodosia) em 1345, que ficou conhecida como o primeiro caso de guerra biológica da história.
Outra instância histórica ocorreu com o surgimento da sífilis, cuja origem remonta-se a outro cerco: quando as tropas francesas sitiaram Nápoles (1495). O estigma desta doença fez com que cada país afetado culpasse “aos outros” por seu sofrimento. Assim, italianos, espanhóis e alemães a chamavam de “doença francesa”. Os franceses de “doença napolitana”. Essas alegações refletiam as ansiedades e frustrações projetadas por um grupo social ou país sobre supostos culpados externos. Há um intenso debate hoje sobre a necessidade de retirar o nome ou fazer alusões a uma doença por causa de sua aparente origem, pois pode levar a conotações acusatórias, até mesmo xenófobas.
A dicotomia entre isolamento e deterioração socioeconômica
O princípio de separar o doente contagioso do resto da população tem raízes nas antigas escrituras religiosas. Durante muito tempo, as pessoas pensavam que a lepra era uma doença infecciosa hereditária, uma maldição ou castigo divino. Por ser considerada “impura”, leprosários foram construídos na periferia das cidades, confinando seus pacientes a uma vida de total reclusão. Durante as grandes pragas, dentro das muralhas da cidade, os doentes infectados eram isolados em asilos ou trancados em suas casas com guardas à porta. O isolamento extremo foi o precursor das quarentenas. Veneza estabeleceu o primeiro sistema regulamentado de quarentenas ou “Quaranta Giorni,” dando a um conselho de três pessoas o poder supremo de deter navios, cargas e indivíduos por até 40 dias (1348).
Durante séculos, essas e outras práticas de “achatamento da curva”, tais como bloqueios, cordões sanitários, fechamento de locais públicos, e distanciamento social, têm sido as primeiras estratégias oficiais para responder a surtos infecciosos desconhecidos. Entretanto, nem sempre foram eficientes devido à ansiedade social e aos prejuízos econômicos que foram infligidos. Sua implementação e cessação requerem informações epidemiológicas confiáveis para equilibrar a necessidade de proteger a população e abordar outras prioridades urgentes, algo que ainda é muito difícil de determinar. Um levantamento apressado das medidas de contenção pode ter consequências devastadoras, como aconteceu com a segunda onda de infecções durante a gripe espanhola.
A persistência da vulnerabilidade
As pandemias são acompanhantes do desenvolvimento. Dos antigos impérios até a economia global atual, as redes comerciais interligadas e as cidades superlotadas criaram sociedades mais prósperas, porém vulneráveis. Os efeitos do COVID-19 serão muito diferentes da peste negra ou da gripe espanhola, pois estas doenças impactaram populações mais pobres e com menos conhecimento e recursos disponíveis. Embora, as pandemias sempre afetam aos mais desfavorecidos, não só em termos de fatalidades, mas também por causa dos danos colaterais (econômicos, psicológicos e sociais) que persistem quando a crise termina. Em um mundo com desigualdades alarmantes entre os países e dentro destes, amplos setores estarão à sua mercê porque não possuem as mínimas condições de qualidade de vida e proteção social, nem o capital socioeconômico para enfrentar os esmagadores desafios que se avizinham. Será nossa responsabilidade coletiva minimizar este flagelo e construir uma comunidade internacional mais colaborativa, equitativa e resiliente.
O COVID-19 é um alerta para a humanidade evoluir e entender que, como disse o historiador Frank Snowden: “Longe de ser um produto exclusivo das sociedades ‘atrasadas’, os surtos de doenças mortais são, quando muito, um subproduto negativo do progresso humano. Ao alterar ecossistemas e apagar fronteiras naturais, os seres humanos têm se exposto continuamente a germes, vírus e bactérias que evoluem para explorar suas vulnerabilidades.” O coronavírus não é mais um inimigo sorrateiro. Seremos capazes de derrotá-lo e preparar-nos para outros que nos esperam pacientemente em silêncio?
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