**Discurso proferido no evento paralelo da Fundação Lemann durante a Assembleia Geral da ONU 2023 “Erradicação do analfabetismo nas escolas brasileiras: Lições para o Sul Global”.
Eu gostaria de começar falando sobre um problema enorme – e então falarei sobre uma oportunidade enorme de resolver esse problema.
Antes da pandemia, em 2018, a OCDE publicou um relatório chocante sobre mobilidade social. O trabalho avaliou quanto tempo leva para uma pessoa pobre chegar à classe média. Na Dinamarca, os pesquisadores verificaram que essa mudança leva normalmente duas gerações. Na Austrália e no Japão, quatro gerações. Vocês sabem quanto tempo leva para alguém no Brasil passar da classe baixa para a classe média? Nove gerações!
Se isso acontecia antes da pandemia, certamente está pior hoje, principalmente por causa de todo o tempo que a geração mais jovem ficou fora da escola.
O Brasil viveu um dos períodos mais longos de fechamento das escolas de toda a América Latina – foram 287 dias nas escolas públicas. O FMI calculou que os estudantes brasileiros podem ganhar cerca de 9% menos ao longo da vida em decorrência desse fechamento das escolas e das perdas de aprendizado relacionadas a isso.
Esse contexto nos traz para a conversa de hoje sobre investimento em capital humano e o caminho a seguir para o Brasil, a América Latina e o Caribe.
O capital humano é essencial em todos os aspectos do progresso humano. Desenvolver o capital humano ajuda as pessoas a melhorarem suas condições socioeconômicas. E nos ajuda a alcançar nosso potencial, por meio do acúmulo de conhecimento e habilidades necessárias para tudo, desde conseguir o primeiro emprego até conseguir resolver grandes problemas como a mudança climática. E também é fundamental para ajudar os países a reduzirem a pobreza e a desigualdade, aumentar a produtividade e acelerar o crescimento econômico. Pesquisas indicam que aumentar as habilidades cognitivas da força de trabalho de um país em 1 desvio padrão pode significar um aumento anual do PIB em 2%.
Então, hoje, para melhorar a vida dos cidadãos, e lidar melhor com nossos desafios compartilhados, devemos não apenas investir mais no desenvolvimento humano, mas também investir de maneira mais inteligente. Vou falar sobre isso mais detalhadamente, mas antes, vou apresentar a situação atual da educação no Brasil e na América Latina, para que possamos entender melhor por que é importante aumentar nossos investimentos em capital humano.
Educação na América Latina e no Caribe
A boa notícia é que mais crianças de famílias de baixa renda estão buscando educação superior em comparação com a geração anterior. Os jovens hoje também adquirem mais habilidades do que os seus pais e avós. E as crianças têm mais acesso a oportunidades educativas. A má notícia é que as habilidades das crianças na América Latina e no Caribe continuam abaixo das observadas em gerações anteriores dos países da OCDE.
Então, apesar do progresso educacional observado na região, nossas crianças ainda ficam atrás das crianças que vivem em países desenvolvimentos. E as crianças da nossa região também foram mais afetadas pelo período de fechamento mais longo das escolas durante a pandemia.
Mesmo antes da pandemia, os resultados do PISA, que funciona como um padrão para medir o progresso educacional nos países da OCDE, mostravam que 50% dos jovens de 15 anos na região não tinham competências básicas de alfabetização, ou seja, eles não entendiam o que liam.
Além disso, há grandes disparidades com relação à renda: 72% das crianças de famílias de mais baixa renda não conseguiam ler no nível do ano previsto para sua idade, enquanto entre as crianças de famílias de renda mais alta, o percentual era de 28%.
E não são apenas as crianças que têm dificuldade para ler. Outros testes mostraram que 61% dos adultos na América Latina estavam no primeiro nível ou abaixo disso em proficiência de leitura, em comparação com apenas 16% dos adultos vivendo em países da OCDE.
Mas, lembrem-se, isso tudo antes da COVID. Então, imaginem por um momento o que aconteceu com todas aquelas crianças quando as escolas fecharam:
- Os estudantes perderam até dois anos de aprendizado.
- Com base em evidências de São Paulo, onde o BID publicou um dos primeiros levantamentos com evidência rigorosa sobre perdas de aprendizado, sabemos que as crianças voltaram a aprender, mas não rápido o suficiente para compensar o que perderam.
- De maneira geral, no Brasil, antes da pandemia, quase 16% dos estudantes tinham níveis de alfabetização abaixo do esperado para sua idade, de acordo com uma pesquisa feita pelo IEDE. Lamentavelmente, esse percentual mais do que dobrou até o ano passado, chegando a quase 34%.
Isso significa que hoje, três de cada dez crianças no Brasil não sabem ler ou escrever palavras simples como “casa” ou “pipoca”.
A volta ao normal não é suficiente
Para mudar essa realidade, não podemos apenas voltar ao “normal”. O normal não é o suficiente para essas crianças e não deve ser o suficiente para nós. Então, devemos acelerar o progresso no aprendizado.
Hoje, estou aqui para dizer a vocês que isso pode ser feito. E que podemos fazer isso começando pelo básico, que é a leitura e a escrita.
Vou dizer por que isso é importante. Para isso, vou falar sobre o chamado “Efeito Mateus” e como ele impacta essas habilidades-chave. Como os educadores sabem, esse termo se refere ao fenômeno no qual os estudantes que têm um bom início na alfabetização continuam a ir bem na escola nos anos seguintes, enquanto os que começam com dificuldade, acabam piorando. O nome do fenômeno vem de um famoso verso bíblico, Mateus 25:29: “a todo aquele que tem, será dado mais, e terá abundância. Mas ao que não tem, até o que tem lhe será tirado.”
É uma citação triste, não é? Mas os especialistas em leitura são muito familiarizados com ela. E a realidade também é triste, porque os dados mostram que as lacunas de leitura aumentam na escola. As crianças que sofrem para ler e escrever nos primeiros anos tendem a piorar com o tempo.
Precisamos mudar isso.
Isso não é fácil. Aprender a ler não é um processo natural. Não acontece simplesmente. Você precisa de escolas, de professores. É necessário prática e uma abordagem estruturada e sistêmica. As crianças devem processar os sons, decodificar as primeiras letras e então, as palavras. Elas precisam aprender o vocabulário, para que possam conectar as palavras com seu significado. E processar diferentes palavras em frases e parágrafos para entender e ler com um propósito.
Primeiro, as crianças precisam aprender a ler. Depois, elas podem ler para aprender.
Vários esforços têm sido feitos para melhorar a leitura e a escrita das crianças menores, mas muitos esforços têm falhado, principalmente por problemas no desenho e na implementação.
Mas hoje, eu quero compartilhar duas histórias de sucesso.
O Desafio de Ampliar a Alfabetização
Vou começar com o caso de Sobral, cidade no Ceará que tem apresentado os maiores avanços no índice de qualidade educacional em aproximadamente 20 anos.
No ano 2000, 48% dos alunos da segunda série na cidade não conseguiam ler. Em 2005, primeiro ano em que o Brasil calculou o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), 1.365 municípios analisados tinham resultados melhores do que Sobral. Mas, em 2017, a cidade foi notícia no país por chegar ao topo do ranking nacional, nos anos iniciais e finais do ensino fundamental.
O caso de Sobral tem sido amplamente estudado e demonstra quais os ingredientes necessários para melhorar a alfabetização. A receita inclui algumas metas claras:
- Cada estudante deve finalizar o ensino fundamental na idade adequada e com o aprendizado adequado.
- Todos os estudantes devem estar alfabetizados ao final do 2º ano do ensino fundamental.
- As avaliações de estudantes devem ser usadas de forma eficaz.
- O currículo escolar deve ter foco.
- Os professores devem ser preparados e motivados.
- A gestão escolar deve ser independente e responsável.
- Finalmente, a liderança política deve ser comprometida.
O segundo caso envolve o BID e é baseado na neurociência, mostrando como o cérebro trabalha durante a leitura. Nós trabalhamos com especialistas em alfabetização precoce para traduzir uma pesquisa da neurociência em programas na região, para garantir que os estudantes aprendem a ler até o terceiro ano.
Na Colômbia, trabalhamos com a Fundación Luker para desenvolver o programa “Aprendamos Todos a Leer” e a versão em português, “Vamos Todos Aprender a Ler”. O programa promove a aquisição, desenvolvimento e consolidação de habilidades de leitura e escrita nos primeiros anos escolares.
Nos unimos também à Universidade Harvard para analisar o programa usando três avaliações experimentais. Aprendemos que a implementação adequada do programa durante 5 anos melhorou em 30% o desempenho em leitura em testes padrão. O programa se tornou uma política pública na Colômbia e no Panamá, beneficiando mais de 700 mil crianças e professores.
Esse programa é um bem público que qualquer país pode usar e inclui um guia de professores, treinamento para docentes, cadernos de exercícios para estudantes e outros materiais que ajudam a garantir uma implementação bem-sucedida.
O programa recebeu vários prêmios internacionais, incluindo um da Fundação Jacobs, em 2022, e o WISE (World Innovation Summit for Education) da Fundação Catar, em 2021.
Os casos do Ceará e o “Vamos Todos Aprender a Ler” são exemplos de políticas públicas e programas que podemos padronizar e replicar não apenas em 1 ou 2 países, mas em toda a América Latina e Caribe, transformando a educação para todos. Isso é exatamente o que precisamos fazer para aumentar a escala e o impacto do nosso trabalho.
Transformação Digital na Educação
Agora, eu gostaria de falar sobre outra oportunidade e, como mencionei no início, essa é uma oportunidade enorme porque é um recurso inexplorado. Trata-se de um recurso que nos permite escalar impacto nas comunidades e países, alcançando mais crianças do que jamais foi possível. Estou falando da digitalização e transformação digital. E essa é a razão pela qual nos unimos a parceiros como a Fundação Lemann e o Banco Mundial.
Estamos trabalhando com a Fundação Lemann e a Imaginable Futures em um projeto piloto no Brasil chamado ImpulsiONar. O objetivo é melhorar o aprendizado por meio da inovação, fortalecendo o ecossistema da edtech – ou tecnologia educacional.
Em qualquer conversa sobre digitalização de serviços públicos, precisamos reunir os setores público e privado. Trabalhamos com formuladores de políticas e fundadores de edtech e fornecemos treinamento para os formuladores de políticas sobre como adquirir e implementar serviços fornecidos por edtechs e para edtechs sobre como adaptar e implementar soluções para e com o setor público.
Um estudo preliminar do ImpulsiONar mostrou que os alunos aprenderam, em média, quase 38% mais do que antes do programa. Esses resultados foram obtidos principalmente em municípios pequenos e pobres (Domingos Mourão-PB; Guaramiranga-CE; Igarassu-PE; Bonito-PE; Cabrobró-PE; Volta Redonda-RJ; Santa Maria-RS).
Além disso, há poucas semanas, o BID anunciou uma aliança histórica com o Banco Mundial para trabalhar na educação digital. Por meio do nosso programa Escolas Conectadas para Todos, apoiaremos os esforços para eliminar a lacuna digital nas escolas, melhorando a conectividade e as competências digitais dos professores, por meio de práticas pedagógicas inovadoras e treinamento híbrido. Também identificaremos e mapearemos as escolas sem conexão e as lacunas de habilidades dos professores, o que nos ajudará a desenvolver melhores planos de investimento para eliminar essas brechas.
A parceria também nos ajudará a produzir bens públicos regionais, como diretrizes que otimizem os investimentos na infraestrutura digital das escolas e ferramentas para atualizar os processos de aquisição. Além disso, serão gerados recursos educacionais digitais para impulsionar o treinamento de professores em competências digitais.
Separadamente, na Nicarágua e em Belize, o BID está lançando projetos de instrução sob medida para promover habilidades básicas em idiomas com o apoio da tecnologia digital. Em ambos os casos, apoiamos o uso de software baseado em inteligência artificial para criar um caminho de aprendizado individualizado para cada aluno com base na avaliação contínua de seu nível de habilidade.
Por exemplo, se os alunos tiverem dificuldades com a compreensão de leitura, o software terá tarefas direcionadas para ajudá-los a aprimorar habilidades específicas e entender conceitos. O software também fornece feedback imediato ao professor sobre o progresso do aluno.
Também estamos trabalhando com Augusto Buchweitz, neurocientista brasileiro da Universidade de Connecticut e dos Laboratórios Haskins, bem como com pesquisadores do Instituto Edube (Renan Sargiani e Ana Luiza Navas) para desenvolver uma plataforma de avaliação de fluência. A plataforma permitirá que os educadores gravem os alunos dos primeiros anos enquanto eles leem um conjunto de palavras e, usando a IA, retornem os resultados aos professores para que eles possam criar ações de resposta rápida.
Parcerias e Investimentos Mais Inteligentes
Os exemplos apresentados são apenas alguns dos programas e abordagens que melhoram os resultados educacionais e impulsionam o capital humano.
Esses programas baseados em evidências produzem resultados – como as centenas de milhares de alunos que estão recebendo uma educação melhor hoje na Colômbia e no Panamá. São programas como esses que devemos expandir em toda a região, porque não vamos conseguir uma transformação educacional a não ser que façamos com que ela aconteça em todos os países.
Para isso, precisamos trabalhar mais de perto como parceiros e expandir nossa colaboração com as partes interessadas dos setores público e privado. Evidentemente, também precisamos investir mais. Mas também devemos investir de forma mais inteligente. E isso começa com escolhas cuidadosas.
Sabemos que o retorno da educação é alto. Investir proativamente em educação não apenas promove o sucesso acadêmico, mas também gera ganhos e economias substanciais de longo prazo para a sociedade.
Vou dar um último exemplo. De acordo com o Instituto Raiar, um dos nossos parceiros no Brasil, investir nos anos iniciais custa cerca de US$ 100 por criança, por ano, durante quatro anos – do jardim de infância ao terceiro ano do ensino fundamental. Esse valor cobre custos relacionados ao treinamento de professores, monitoramento, avaliações e materiais básicos para alunos e educadores. Em contraste, o custo para a sociedade é de incríveis US$ 18 mil por ano para sustentar um jovem encarcerado. Evidências dentro e fora da América Latina indicam que a participação no ensino superior tende a diminuir os índices de criminalidade e encarceramento.
Conclusão
Para concluir, gostaria de dizer que os exemplos que compartilhei hoje mostram que o sucesso não é apenas possível, mas altamente provável, se tomarmos as medidas certas no momento certo e nos lugares certos.
Na América Latina, a porcentagem de jovens adultos matriculados atualmente em programas de ensino superior é o dobro do registrado nos anos 1990. Esse tipo de progresso não foi reproduzido por nenhuma outra região do mundo.
Essa é uma conquista extraordinária. Vamos nos inspirar nela. E vamos trabalhar juntos para aproveitar a oportunidade e obter resultados ainda melhores para a região e para milhões de crianças cujo futuro está em jogo.
Texto também disponível em inglês.
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