Casas viram escritório, estádios dão lugar a hospitais de campanha, e leitos médicos são instalados em hotéis. A transformação de espaços públicos e privados já se consagra como uma das marcas da pandemia da COVID-19, mas a situação não chega a ser inédita.
Em todo o mundo, testemunhar a adaptação do uso dos edifícios é parte da história de diversas cidades, seja pela obsolescência de algumas construções, seja por algum evento de força maior – como as catástrofes que obrigam ginásios esportivos a acolherem desabrigados.
É verdade que esta pandemia impôs aos gestores urbanos um ritmo mais veloz de adaptações, além dos desafios do distanciamento social. Mas também é fato que, apesar das diferenças, as experiências do passado oferecem aprendizados importantes para o momento atual e dão pistas sobre reflexões que temos que enfrentar: o que faremos com essas estruturas adaptadas agora? Como resolver a insuficiência e a falta de moradia, escancaradas durante as campanhas pelo #FiqueEmCasa?
Veja, a seguir, lições do passado, ações do presente e reflexões para o futuro sobre a adaptação de espaços e construções urbanas:
Lições do passado
Adaptar edifícios é um exercício de sustentabilidade: evita demolições prematuras e estende o ciclo de vida da construção e dos materiais (Bullen, 2011)1.
Mas mesmo quando a sustentabilidade não era preocupação central no planejamento urbano, a transformação do uso dos edifícios já ocorria à medida que a própria sociedade e suas necessidades iam mudando:
- Antigas prisões se converteram em centros comunitários e culturais em Valparaíso(Chile) e Montevidéu;
- Igrejas foram transformadas em habitações em Montreal (Canadá), Utrecht (Países Baixos), Londres, entre outros;
- Espaços industriais viraram lofts ou ateliês em Nova York e Baltimore (EUA), ou parque de diversões em Ruhr (Alemanha), o Engenho Central em Piracicaba (SP) tornou-se um centro cultural, além de inúmeros outros exemplos.



Pequenos apartamentos no distrito de San Eduardo em Montereal ©2019 Isidora Larraín
Biblioteca da Igreja Dominicana de Maastricht se soma às incubadoras, restaurantes e outros usos em igrejas.

Lofts de habitação e residências de artistas em edifícios industriais em Baltimore, USA. https://www.flickr.com/photos/baltimoreheritage/40593728545
No Brasil dos anos 1970, a arquiteta Lina Bo Bardi propôs estratégias de reabilitação para edifícios: o centro cultural Sesc Pompeia foi fábrica de tambores, por exemplo. Mantendo o máximo dos prédios existentes, Bo Bardi se adiantava ao tratado internacional de Burra de 2013, que preconizava “fazer quando for necessário e o menos possível” (Condello et al, 2016)2. Paulo Mendes da Rocha também desenvolveu a Pinacoteca de São Paulo no que foi a escola de Artes e Ofícios de São Paulo. São exemplos de gênios da arquitetura brasileira que se adaptam a novos usos.

Fonte das imagens da direita para a esquerda: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/f/fa/Casa_do_Olodum.jpg, https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/3/3e/Casa_do_Benin_01.jpg, © 2019 Isidora Larraín
Desses exemplos do passado, podemos tirar lições como:
- a mínima intervenção é também a mais rápida, e o tempo é precioso nesta crise sanitária.
- no caso de a adaptação ser mais profunda, o sistema de avaliação patrimonial permitemanter aspectos essenciais das estruturas e suas memórias, mesmo diante de usuários e usos não imaginados previamente.
- A melhor forma de conservar um edifício de forma sustentável é mantê-lo ocupado, seja respeitando o uso original ou assumindo um novo uso.
Ações do presente
A necessidade de readaptar estruturas para o uso voltou à tona em 2020. As cidades lançaram mão de estratégias diversas para enfrentar a falta de espaço para pacientes em decorrência da pandemia. Cada uma dessas adaptações traz consigo oportunidades distintas de reflexão e deaprendizado à luz das experiências bem sucedidas no passado e do futuro mais sustentável que se almeja:
Adaptação de hotéis para receber pacientes
Há diversos exemplos, do Brasil e do mundo, nesse sentido. Em Natal (RN), o imponente, mas desativado, hotel Parque da Costeira, construído há 30 anos com 330 apartamentos e oito piscinas, se prepara para receber 100 leitos clínicos e 20 de UTI. Após leilão que não atingiu o lance mínimo, o uso do edifício foi cedido à prefeitura enquanto o estado de calamidade prevalecer.
Trata-se de uma intervenção reversível e que agrega valor ao edifício, que terá funcionado como um bem público em tempos de crise. No futuro, o hotel terá, provavelmente, apenas uma placa em memória do que foi em 2020.


https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Tenda_PC_covid-19_Verona_2.jpg

A solução aplicada a hotéis, dada a facilidade de adaptação, pode ser repensada para outros setores. Em diversas partes, discute-se o impacto dos gastos com aluguel de locais comerciais que deverão permanecer fechados por meses. A reutilização temporária ou permanente dessesespaços garantiria não só renda, mas também a sobrevivência desses prédios e do que eles significam para a vizinhança.
Os benefícios dessa estratégia são diversos, incluindo:
- garante uso de espaços que estariam ociosos – com vantagens para a economia, a memória e a vida do entorno, além de evitar demolições precoces;
- para o paciente, psicologicamente, é mais alentador e digno recuperar-se em um prédio de verdade que em uma estrutura de lona;
- estruturas de um hotel para o check-in, para a alimentação no quarto e de lavanderia são mais fáceis de se adaptar a um hospital;
- É preciso levar em conta o impacto na paisagem urbana que hospitais de campanha, surgidos abruptamente, trazem, criando percepção de crise ou pânico.
Na mesma linha, o Airbnb acolhe profissionais da saúde na Itália e pessoas sem teto em Barcelona. Além disso, as locações pela plataforma, anteriormente destinadas a turistas por poucos dias, estão se abrindo a prazos mais longos, o que atende em parte o déficit habitacional.
Apesar dos benefícios da readaptação do uso de edifícios obsoletos, há também desafios interessantes, como:
- questões arquitetônicas de funcionalidade, habitabilidade e padrões de conforto;
- barreiras legais ou regulatórias para mudar o uso do solo no longo prazo (fora de períodos de emergência).
É uma equação complexa a ser resolvida. Felizmente, há vários casos de sucesso ao longo dosséculos e podemos aprender com eles. Nesse sentido, oportunidades e barreiras–chave nos facilitam na tomada de decisões:

Além das vantagens e dos desafios dessa opção, convém destacar as lições tiradas desse uso, como:
- Dependendo da edificação e seu nível de proteção, sugere-se manter a fachada, a tipologia do edifício e a estrutura bruta, enquanto se modificam espaços interiores de acordo com as novas demandas;
- Além das vantagens econômicas e ambientais com intervenções desnecessárias, essa estratégia protege os valores coletivos associados ao edifício.
- Manter a estrutura também permite usufruir das vantagens funcionais: por exemplo, um prédio no formato de casa pátio dificilmente funcionará bem se fecharmos a luz ou ventilação para acolher novas funções.
Construção de hospitais de campanha e uso de centros de convenções
Outra opção adotada por diversas localidades são as construções de estruturas temporárias para o tratamento de pacientes, muitas instaladas dentro de equipamentos de educação,esportes ou em centros de convenções. É o caso do Estádio do Pacaembu em São Paulo ou oMaracanã, no Rio.
Em Madri, o Palácio de Gelo, centro de patinação e entretenimento no inverno, por meio de concessão privada isenta de impostos, se converteu, durante o período mais crítico da pandemia, em um necrotério.
Há exemplo do uso de centro de convenções em todo o continente, como o RioCentro, no Rio,o Espacio Riesco, em Santiago, e Javits Center em Nova York.
Na capital chilena, a ativação de um centro de convenções privado locado pelo Ministério da Saúde foi realizada em questão de semanas. O espaço está na área até então mais afetada pela pandemia em Santiago e conta com acesso estratégico e geradores elétricos, chaves para o funcionamento hospitalar. A controvérsia se deu sobre o processo de escolha desse espaçoquanto à transparência, que poderia ser brevemente justificado tecnicamente em comparaçãocom alternativas de custo zero para os cofres públicos, na mesma região.
Por outro lado, o uso do Centro de Convenções Jacob Javits, de propriedade e gestão públicaem Nova York, é exemplar quanto a agilidade na instalação da operação. Em menos de uma semana após a autorização, já contava com 1.000 leitos hospitalares. Os militares que trabalharam na implementação destacaram que a adaptação física não foi um problema e afirmaram que usaram método similar no pós-furacão Katrina. A gestão hospitalar, por outro lado, é mais desafiadora.
Desses exemplos, surgem aprendizados como:
- A locação de espaços privados traz a discussão da necessidade de justificar essa escolha e a importância da transparência em atos públicos;
- A reabilitação adaptativa precisa ser acompanhada de bons modelos de gestão desde o princípio do redesenho, com modelos complexos em estruturas polifuncionais de longo prazo e modelos o mais simples e claro possíveis sob protocolos de emergência.
Com a COVID-19, a adaptação de usos pode abrir oportunidades de inovação e aporte urbano em infraestruturas fechadas ou subutilizadas. Desde 2018, o Laboratório de Cidades do Banco Interamericano de Desenvolvimento testa novos usos temporais em espaços icônicos e centrais de cidades como São Luís, Panamá, Paramaribo, Buenos Aires e Santiago. São realizadasavaliações para entender quais dos novos usos se adaptam melhor e replicar as experiênciasbem sucedidas. O espaço compartilhado que não pudemos utilizar assumirá um papel distinto nas cidades que podemos explorar e co-construir.
Reflexões para o futuro
Independentemente das escolhas feitas pelas cidades, o pós-pandemia reservará desafios a serem enfrentados. Listamos alguns:
- Com a adoção massiva do teletrabalho, haverá escritórios ociosos? Será que, como herança do COVID-19, devemos pensar em adaptar esses espaços a novos usos, tal como vêm fazendo cidades? Em Amsterdã, por exemplo, antigos edifícios de escritórios em áreas centrais atendem o déficit de habitação bem localizada.
- Nossas cidades estão aprendendo a adaptar espaços estrategicamente a uma possível próxima pandemia ou crise?
- Se uma certeza emerge dessa crise, é que devemos ser flexíveis para reagir rápido a novas necessidades urbanas. Não temos nem o tempo, nem os recursos (financeiros e ambientais) para construir toda vez do zero.
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