Todos os anos, os governos destinam e executam bilhões por meio da contratação pública para garantir o funcionamento do Estado e a prestação de serviços essenciais à população. No entanto, gerir bem esse gasto não se trata apenas de assinar mais contratos, mas de garantir que cada dólar investido gere o maior valor possível. E, para isso, uma ferramenta fundamental — muitas vezes subestimada — é o uso estratégico dos preços de referência.
Esses preços oferecem um ponto de partida técnico e objetivo para estimar quanto o governo está disposto a pagar por um bem ou serviço. Quando bem utilizados, permitem um melhor planejamento, a formulação de orçamentos mais realistas e o desenho de processos de compra com maior clareza, antecedência e eficiência.
Nesta entrada, analisamos quatro passos-chave que os líderes da contratação pública na América Latina e no Caribe podem seguir para fortalecer o uso dos preços de referência e, assim, alcançar melhorias significativas na qualidade, eficiência e impacto do gasto público.
Passo 1: Ser estratégicos com os preços de referência e de reserva
Na contratação pública, os preços não são apenas números em uma planilha: são decisões de política pública. Eles determinam o que será entregue, quando e a que custo para a população. Por isso, é fundamental estabelecer corretamente esses dois tipos de preços:
- Preço de referência: o que o governo deveria esperar pagar, com base em dados sólidos e julgamento técnico.
- Preço de reserva: o valor máximo que o governo está disposto a pagar para fechar o negócio.
O preço de referência é uma estimativa técnica interna baseada em dados históricos, estudos de mercado, cotações e análises comparativas. Não se trata apenas de conhecer o preço de mercado de um bem ou serviço, mas de avaliar o custo e o impacto de atender (ou não) a uma demanda específica do governo. Portanto, pode considerar, entre outros fatores, restrições orçamentárias, o custo da inação, a criticidade da necessidade e seu efeito na continuidade operacional ou na prestação de serviços à população.
O preço de reserva, por outro lado, cumpre uma função estratégica: incentivar ofertas mais competitivas, gerar economias reais e proteger o uso dos recursos públicos. Esse preço pode ou não ser revelado aos fornecedores, e essa decisão deve ser cuidadosamente avaliada conforme o contexto do mercado.
Em resumo, a relação entre o preço de referência e o preço de reserva é sequencial e funcional. Para que um processo de contratação pública gere economia, eficiência e melhor uso dos recursos, o preço de reserva deve ser menor ou igual ao preço de referência.
Para maximizar o valor do dinheiro público, o preço de reserva deve refletir um teto disciplinado baseado no preço de referência — não como uma formalidade, mas como uma âncora estratégica.
Quando fundamentado em uma estimativa sólida, ele se torna uma ferramenta poderosa para fomentar a concorrência, controlar os custos e aumentar o impacto de cada decisão de compra pública.
Passo 2: Construir preços de referência baseados em dados, não em suposições
Ter uma compreensão conceitual clara do preço de referência é apenas o primeiro passo. Para que essa ferramenta realmente contribua para melhorar a qualidade do gasto público, é essencial também fortalecer a forma como ela é calculada. E é justamente aí que reside grande parte do desafio.
Na prática, a estimativa do preço de referência costuma se basear em médias simples de preços históricos, cotações pontuais (consultando alguns fornecedores) ou preços observados em processos de compra anteriores da mesma entidade. Embora essa abordagem possa ser útil em certas condições, ela nem sempre capta a complexidade dos mercados nos quais a contratação pública opera. Nem todos os preços são comparáveis, e nem todas as contratações enfrentam as mesmas condições de oferta e demanda.
Por exemplo, o preço de um mesmo bem pode variar significativamente conforme a região geográfica, a urgência da compra, o volume requerido ou a disponibilidade de fornecedores alternativos. Ignorar esses fatores pode levar a estimativas imprecisas, limitando a utilidade do preço de referência como insumo para um planejamento estratégico eficaz.
Uma alternativa mais robusta para lidar com essa tarefa é o uso de metodologias econométricas, como modelos multivariados ou modelos de preços hedônicos, que permitem estimar o valor esperado de um bem ou serviço com base em múltiplas características observáveis. Essas metodologias não apenas aumentam a precisão da estimativa, como também permitem construir intervalos de confiança — reconhecendo que a estimativa não é determinística, mas probabilística — e ajudam a detectar padrões sistemáticos no comportamento dos preços públicos.
Os preços de referência não devem ser estimativas aproximadas, mas projeções inteligentes. Bem construídos, oferecem aos compradores uma vantagem no planejamento, na negociação e na obtenção de melhores resultados com o dinheiro público.
Passo 3: Definir o preço de reserva conforme o grau de concorrência do mercado
Uma vez que se tenha uma estimativa sólida, o próximo passo é determinar o preço de reserva, ou seja, o valor máximo que a entidade está disposta a pagar para adjudicar um contrato. Como mencionado no início desta publicação, esse limite deve ser menor ou igual ao preço de referência. O objetivo é criar incentivos para que os fornecedores concorram em preço, o que permite gerar economias efetivas em comparação com o valor estimado da solução.
Para estabelecer esse desconto, não é recomendável aplicar simplesmente um percentual fixo ou uma regra geral. Idealmente, o nível de ajuste do preço de reserva deve se basear nas condições reais do mercado. Uma forma de fazer isso é por meio de indicadores observáveis de concorrência, como o número médio histórico de propostas recebidas em processos similares ou o comportamento histórico dos preços em relação ao ambiente competitivo.
Em outras palavras, o preço de reserva pode ser estimado como uma função do preço de referência e do nível esperado de concorrência, utilizando evidências empíricas para ajustar essa relação. Essa abordagem garante que a definição do preço de reserva não seja uma decisão arbitrária, mas uma ferramenta estratégica baseada em dados, alinhada com os objetivos de eficiência, concorrência e otimização do gasto público.
Um preço de reserva bem calibrado transmite rigor e intenção estratégica. Demonstra que a entidade compradora compreende a dinâmica do mercado e estabelece expectativas claras, criando as bases para uma contratação competitiva, transparente e fiscalmente responsável.
Passo 4: Avaliar os prós e contras de divulgar o preço de reserva
Uma vez definido o preço de reserva, a próxima decisão crítica é se ele deve ser tornado público ou não.
Divulgar o preço de reserva pode ser adequado em mercados altamente competitivos, pois ajuda a estabelecer expectativas claras e gera pressão competitiva para baixo. No entanto, em mercados com alta concentração ou baixa participação, divulgá-lo pode facilitar a colusão Nesses casos, mantê-lo confidencial pode ser preferível, desde que exista um procedimento rigoroso e verificável que garanta que o preço foi definido antecipadamente e não foi alterado após o recebimento das propostas. Isso é fundamental para manter a confiança e a transparência no processo.
Além disso, divulgar um preço de reserva implica um compromisso que pode limitar a flexibilidade do comprador. Obriga a rejeitar propostas que ultrapassem esse limite, mesmo que apresentem soluções tecnicamente superiores. Por outro lado, mantê-lo confidencial pode permitir a avaliação de propostas de forma mais abrangente, sem incentivar os proponentes a fixarem preços estrategicamente logo acima do limite. Em qualquer caso, tanto a decisão de utilizar um preço de reserva quanto a de torná-lo público devem ser acompanhadas de regras claras que garantam equidade, previsibilidade e transparência no processo.
Em resumo: seja divulgado ou não, o preço de reserva deve ser gerido com disciplina e transparência. A chave está em alinhar a decisão com a realidade do mercado e sustentá-la com regras claras que protejam a equidade, incentivem a concorrência e salvaguardem a confiança pública.
Estimar melhor para comprar e contratar melhor: lições da região
Uma revisão de experiências em vários países da América Latina e do Caribe revela dois grandes desafios:
- As estimativas de preços de referência baseiam-se principalmente em médias simples, o que pode levar a preços inflacionados, pois muitas vezes não consideram fatores como volume ou urgência.
- Muitos servidores públicos utilizam esses preços de referência inflacionados como preços de reserva, reduzindo assim a oportunidade de otimizar o uso dos recursos públicos.
Uma análise empírica interna do BID mostra que os ganhos podem ser significativos se os países da região melhorarem a forma como estimam os preços de referência e utilizarem estrategicamente os preços de reserva.
Um dos estudos focou na compra de combustíveis — um tipo de aquisição padronizada, frequente e com ampla disponibilidade de dados. O estudo utilizou um modelo estatístico multivariado para estimar preços de referência ajustados, incorporando variáveis como região, mês e quantidade adquirida.
Com base nesse modelo, foi construído um preço de referência alternativo estimado e comparado com o preço real pago nos contratos adjudicados, os quais haviam sido baseados em preços de referência calculados como médias simples. Em 37 das 379 adjudicações analisadas, o preço pago foi superior ao estimado pelo modelo ajustado.
Isso sugere que o preço de referência oficial era mais alto do que o necessário e, ao ser utilizado como limite de adjudicação, permitiu aceitar propostas que poderiam ter sido mais baixas se a estimativa fosse mais precisa. A economia potencial estimada nesse subconjunto de contratos foi de 5,2%.
Essa análise demonstra que uma melhor estimativa do preço de referência — e a definição estratégica do preço de reserva com base nela — pode gerar economias fiscais sem comprometer o cumprimento dos objetivos do contrato. Mais do que um problema estrutural, isso representa uma oportunidade concreta de melhoria.
Em uma era de crescentes restrições fiscais e maiores exigências por um gasto público de qualidade, estimar com precisão os preços de referência é muito mais do que uma tarefa técnica menor: é um investimento estratégico para tomar decisões mais inteligentes. Quando fundamentados em metodologias sólidas e claramente diferenciados dos preços de reserva, os preços de referência podem se tornar catalisadores poderosos de eficiência, concorrência e transparência na contratação pública.
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