Em 137 países do mundo analisados no ranking do Índice de Competitividade Global, divulgado pelo Fórum Econômico Mundial, o Brasil conseguiu a façanha de ficar em 136o quando ponderado os efeitos da tributação sobre os investimentos e em 137o lugar nos mesmos efeitos sobre o emprego. [1]
Já se sabia que o mesmo é o campeão mundial, há décadas, no custo de compliance – no número de horas (mais de 3 mil) necessárias para pagar os impostos, conforme medido pelo Doing Business, do Banco Mundial. [2] Em suma, o Brasil tem o pior sistema tributário do mundo para o trabalho e quase o mesmo para o capital.
Recentemente, pesquisadores estrangeiros confirmaram o apurado por brasileiros que, à luz das estatísticas do imposto de renda, a sua concentração no País não caiu e, de novo, a própria tributação a agrava. Vale recordar que, em meados da década de 1970 o economista Edmar Bacha cunhou uma expressão que servia para representar o Brasil daquele momento: “Belíndia”. O termo foi utilizado para expor o Brasil como um país de contrastes, no qual era possível identificar uma economia rica como a Bélgica e uma sociedade extremamente desigual como a Índia.
O tempo passou e a situação do Brasil não mudou muito. Após um momento em que o país parecia querer se descolar da pecha da Belíndia, durante os anos 2000, o Brasil voltou a regredir, reeditando um cenário semelhante àquele que inspirou Bacha nos anos 1970. Parte do atual contexto socioeconômico brasileiro pode ser atribuído ao seu sistema tributário.
Modelo tributário esgotado
A carga tributária no Brasil teve uma trajetória altista desde o pós-segunda guerra mundial, passando de um patamar próximo a 14% do PIB em 1947 para pouco menos que 33% do PIB em 2016.
No longo prazo, foi uma evolução muito expressiva e que permitiu que o Brasil figurasse entre os países com maior carga tributária do mundo. Em termos práticos, a carga tributária brasileira é comparável à da Espanha e à média dos países da OCDE [3].
Se houve expansão da carga tributária desde o pós-guerra, a intensidade deste crescimento é mais notável no período posterior à Constituição de 1988. E tal fato não é mera coincidência. Com um caráter social e viés de cidadania, a Constituição de 1988 expandiu significativamente os direitos sociais dos brasileiros, universalizando o acesso à educação e saúde e ampliando o acesso a benefícios de assistência social. Soma-se a isso o ajuste fiscal do setor público iniciado em meados da década de 1990, com vistas à manutenção da estabilidade macroeconômica obtida com o Plano Real.
Naturalmente, em um cenário de elevação de gastos com necessidade de ajuste fiscal havia apenas uma saída: aumento da receita. A necessidade de financiamento do setor público se refletiu na carga tributária. Todo o sistema tributário passou a ser focado em aumentar cada vez mais a arrecadação, de tal sorte que fossem contemplados os gastos sociais e o equilíbrio das contas públicas. Pouco ou nenhum esforço foi empreendido para que o sistema se tornasse mais justo, mais eficiente ou menos complexo. Qualquer modificação resultava, quase sempre, em aumento da arrecadação.
Esta estratégia funcionou até 2008 – ano no qual foi registrado o recorde da carga tributária do Brasil: 34,8% do PIB. De 2009 em diante observou-se uma inversão da tendência expansionista, ainda que de forma suave. Não por acaso, Ribeiro (2016) [4] analisou, através de modelos econométricos, a elasticidade da tributação com relação à atividade econômica e encontrou resultados significativos que apontam para um indicador inferior à unidade (abaixo de 1) para o período posterior a 2008. Ou seja, um crescimento de 1% do PIB geraria um crescimento menor que 1% na receita tributária, proporcionando uma queda na carga tributária.
Tais indícios apontam que o sistema tributário brasileiro chegou ao limite, que está falido e precisa ser repensado com urgência. Se antes o sistema já era problemático por não seguir as boas práticas de tributação – tais como a neutralidade, equidade, simplicidade – atualmente este não serve sequer para fazer frente à necessidade de recursos do Estado brasileiro.
Federalismo fiscal ambíguo
A Constituição de 1988 foi bastante incisiva na resposta ao período imediatamente anterior (regime militar), quando se experimentou a maior concentração de recursos no governo central da história recente do país. Ao elevar os governos municipais ao status de ente federado, a Constituição reforçou o federalismo fiscal e a participação dos governos subnacionais na gestão pública.
De fato, foi possível observar uma paulatina descentralização de recursos desde então. Se atualmente o governo central é responsável por aproximadamente 65% da arrecadação tributária do país, em 1983 essa participação era de 76,6% do total. Da mesma forma, a receita disponível (recurso efetivamente obtido pelo ente após as transferências entre governos) da União, que já foi de quase 70% do total em 1983, hoje corresponde a pouco menos de 54% do total.
Contudo, a observação exclusiva destes números não revela a real situação das relações federativas no país atualmente. Apesar do expressivo crescimento da participação de estados e municípios na receita tributária – com destaque para os governos locais – a maior parte da execução das principais políticas públicas foi repassada a estes governos. Ou seja, os recursos são insuficientes para cobrir os serviços públicos pelos quais os governos subnacionais são responsáveis. Os gastos com educação e saúde – as duas principais rubricas de gastos sociais do Brasil, após a previdência – são executados primordialmente pelos governos subnacionais, fato que constantemente pressiona o orçamento dos mesmos.
O resultado é que embora o Brasil tenha uma carga tributária próxima da média das economias avançadas, há pouca preocupação com a eficiência dos gastos públicos, tornando suas políticas públicas mais próximas dos países em desenvolvimento.
Desafios tributários subnacionais
Outro ponto importante diz respeito às questões tributárias. Os governos estaduais administram o principal tributo do país (ICMS), mas que dá claros sinais de obsolescência arrecadatória, por atingir bases saturadas (bens manufaturados e setores blue chips) e por conviver com a guerra fiscal Ou seja, o ICMS se tornou um imposto altamente anticompetitivo e ineficiente para as necessidades do país.
Já os governos municipais, que a despeito de deterem o tributo indireto mais promissor do país (Imposto Sobre Serviços, ISS), não possuem a mesma autonomia fiscal que as outras esferas de governo (para grande parte dos municípios falta recursos e qualificação técnica), limitando assim a possibilidade de expandir sua arrecadação.
Transferências da União
Há de se citar ainda as transferências da União às demais esferas de governo, que tiveram um viés de crescimento desde 1988, mas que são constantemente alvo de políticas de renúncia tributária promovidas pelo governo central. A dedicação do fisco central em recolher receitas não partilhadas (como contribuições) em detrimento dos demais tributos também é uma estratégia recorrente para reduzir o volume de repasses aos governos subnacionais. Usualmente governantes estaduais e municipais tratam tais medidas como “pilhagem” de recursos subnacionais pela União.
Outro fator crucial para a recente derrocada do equilíbrio das contas públicas estaduais foi uma nova onda de endividamento a partir da virada da década (2010), suportada e incentivada pelo governo federal a partir de garantias e, até mesmo, novos financiamentos. A tomada de crédito com organismos internacionais se tornou algo recorrente.
Crise fiscal nos governos subnacionais
Somados à recessão econômica, todos estes elementos proporcionaram um cenário de crise fiscal bastante severa nos estados e municípios desde 2015. Com efeito, o problema fiscal é mais grave nestes governos do que no próprio governo central, que tem acumulado déficits primários recordes. A falência de alguns governos estaduais e cidades (com atrasos contínuos de pagamentos até de salários) é símbolo da crise que assola o setor público brasileiro.
O Brasil é o caso clássico de federação muito descentralizada, de direito e de fato, mas com descoordenação intergovernamental cada vez mais acentuada. A recessão, que é a pior de sua história, combinada com a crise fiscal sem precedentes e falência financeira de grandes governos, levou o governo central a socorrer emergencialmente, porém sem assumir função coordenadora. Os estados, por sua vez, não se reúnem em um colegiado de governadores e ainda preferem negociar individualmente.
Reformas tributária e federativa
Tradicionalmente o debate sobre reforma tributária no Brasil passa pela ideia de simplificação. Não é para menos, haja vista a extensa e complexa legislação tributária do país, na qual exceções são regras e que o próprio fisco desconhece.
Contudo, hoje é premente contextualizar como a dinâmica da economia moderna vem afetando a carga tributária do Brasil. Há uma tendência, nas principais economias mundiais, de elevação da participação do setor de serviços na determinação do produto. Setores ligados à tecnologia e inovação tem apresentado uma crescente geração de valor agregado, passando a ter um papel cada vez mais protagonista nas economias desenvolvidas. No Brasil o cenário não é diferente. Não apenas pelo desenvolvimento dos serviços, mas também pela estagnação da indústria na última década.
Mas de que forma este movimento tem afetado a tributação brasileira? Para responder a esta pergunta é necessário saber que quase metade dos tributos do Brasil incide sobre bens e serviços, mas concentradamente nos produtos industriais. Este aspecto é extremamente importante, pois ajuda a entender não apenas o baixo potencial de expansão da carga tributária do Brasil como um todo, mas também a crise fiscal pela qual passam os governos estaduais.
O ICMS, que responde por aproximadamente um quinto da receita tributária total do Brasil e é recolhido pelos estados, incide fundamentalmente sobre bens industriais e serviços de setores estratégicos (telecomunicações, energia elétrica, combustíveis), os quais têm razoável correlação cíclica com a atividade industrial. Em resumo, queda na indústria significa também queda no ICMS. Ao mesmo tempo em que o foco da tributação recai sobre a indústria, serviços importantes, como a atividade financeira e seguradora, apresentam uma tributação aquém do ideal.
A reforma tributária deve, então, necessariamente, passar pela redistribuição setorial do ônus fiscal, para acabar com a obsolescência arrecadatória e o desequilíbrio federativo. Seria importante aproveitar a oportunidade para também mudar a articulação federativa, adotando mecanismos de relações intergovernamentais para tornar o federalismo brasileiro realmente cooperativo e coordenado.
Em particular, os estados devem primeiramente resolver uma questão interna: é premente que eles melhorem e organizem sua relação, de modo que possam se unir institucional e nacionalmente, acima das questões regionais, partidárias ou setoriais. Uma mudança de cultura será transformar os problemas de cada estado em um problema do conjunto deles, porque, na maioria dos casos, ou melhor, dos programas de governo, se tratam exatamente dos mesmos desafios, ainda que com intensidade e importância diferenciada.
Notas de rodapé:
1. Ver: https://www.weforum.org/reports/the-global-competitiveness-report-2017-2018
2. Ver: http://www.doingbusiness.org/~/media/wbg/doingbusiness/documents/profiles/country/bra.pdf
3. AFONSO, José Roberto R..; CASTRO, Kleber Pacheco de. Carga Tributária en Brasil: Redimensionada y Repensada. Revista de Administración Tributaria CIAT, [s.l.], n.40, p.1-16, mar.2016.
4. RIBEIRO, Livio. Sobre Arrecadação e Atividade Econômica. Rio de Janeiro: FGV IBRE, 2016. 10 p. (Nota Técnica).
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