Uma das características do sistema tributário do Brasil é a complexidade dos atuais tributos indiretos. Em particular, se destacam a fragmentação das bases tributárias, a incidência cumulativa de tributos em cada etapa do processo produtivo (efeito cascata) e a dificuldade de administração por três níveis de governo (União Federal, 27 estados e 5.570 municípios), cada um com bases e alíquotas diferentes.
Por várias décadas, o país tentou reformar essa estrutura tributária sem muito sucesso, mas a situação mudou em 2023 quando aprovou uma reforma com três mecanismos modernos que, provavelmente, serão um modelo para o futuro do IVA. Este imposto está presente atualmente em 175 países ao redor do mundo e constitui a principal fonte de arrecadação para a maioria dos países em desenvolvimento.
Neste post, discutiremos as conclusões de um estudo que publicaremos em breve sobre os três mecanismos modernos do IVA da reforma brasileira e os benefícios gerados para fazer desse tributo um instrumento mais eficaz, menos regressivo e ajustado ao federalismo do país. Esperamos que as lições do caso brasileiro sejam úteis para qualquer governo pensando em aperfeiçoar o desenho e a aplicação desse tributo.
O que é o imposto sobre o valor agregado?
Idealizado pelo empresário alemão Siemens há mais de cem anos, o imposto sobre o valor agregado é um tributo que as empresas devem pagar sobre o valor que elas agregam no seu processo de produção facilitando a sua especialização sem necessidade de integração vertical para evitar o “efeito de cascata”.
O IVA, ao tributar o consumo no destino com uma base ampla e uma alíquota uniforme, cumpre três critérios de um bom tributo. Primeiro, tem a suficiência de ser um bom arrecadador. Em segundo lugar, ao não discriminar a escolha entre bens e serviços e ao adotar o sistema de creditamento, não influencia a escolha do contribuinte, maximizando a neutralidade. Em terceiro lugar, sua simplicidade administrativa reduz tanto os custos de conformidade do contribuinte quanto o controle do fisco.
O IVA começou a ser colocado em prática na década de 50 na França, e o Brasil foi a terceira jurisdição no mundo a adotá-lo em 1964, mas de maneira imperfeita. No caso brasileiro, atualmente a maior parte dos tributos indiretos incide sobre o consumo de mercadorias e serviços, na forma de quatro tributos distintos: PIS/COFINS do governo federal, ICMS a cargo dos estados e o ISS de competência dos municípios.
Estes quatro tributos incidem em grande parte na origem (onde estão localizados os fornecedores de bens e serviços) e representam a maior fonte de arrecadação do país, com uma participação de 36,4% da arrecadação total dos três níveis de governo (Gráfico 1), assim como a principal fonte de receita dos estados e da maioria dos municípios. Além disso, o Brasil se tornou o país que mais arrecada esse tipo de imposto a nível mundial.
Gráfico 1. IVA em % do PIB e como % da Pressão Fiscal Equivalente em países selecionados (2021)

Fonte: Pressão Fiscal Equivalente em Estatísticas Tributária da América Latina e o Caribe (OCDE, BID, CEPAL e CIAT, 2024).
A reforma tributária brasileira segue os melhores modelos internacionais para o IVA
Em razão do modelo federativo brasileiro, a reforma adotou o modelo de IVA Dual, com a criação de dois tributos distintos: a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), de competência do governo federal, e o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), de competência compartilhada entre estados e municípios.
Além do IBS e da CBS, a reforma também prevê a instituição do Imposto Seletivo sobre certos bens e serviços prejudiciais à saúde e ao meio ambiente, conforme o modelo internacional de excise taxes.
O modelo a ser implementado resolve três grandes problemas do atual sistema tributário:
- Cria dois tributos de base ampla. Os dois novos tributos substituem os quatro tributos com bases fragmentadas (PIS, COFINS, ICMS e ISS). A CBS e o IBS incidirão sobre todas as operações com bens e serviços – conforme os melhores modelos internacionais de IVA.
- Oferece garantia constitucional de creditamento. A reforma garante constitucionalmente que o creditamento será amplo, ou seja, que todo o IBS e CBS pago nas aquisições de bens e serviços darão direito a crédito dos tributos, com exceção de bens de uso e consumo pessoal e demais exceções previstas na Constituição, como casos de isenção e imunidade.
- Põe um fim à guerra fiscal entre os estados. O novo sistema adotará o princípio do destino, segundo o qual as importações serão tributadas e as exportações desoneradas e, internamente, aplicando-se a alíquota do estado e município de destino da operação. A adoção do princípio do destino nas operações interestaduais eliminará a guerra fiscal entre os estados e municípios que, com o atual modelo do ICMS e ISS parcialmente cobrados na origem, se faz através de concessão de benefícios fiscais para atração de investimentos.
- Transição: A transição da distribuição das receitas federativas da origem para o destino ocorrerá ao longo de 50 anos. Nesse período, as receitas serão repartidas conforme o critério de origem vigente, promovendo gradualmente a arrecadação do IBS com base no destino. Essa transição prolongada evita uma redução abrupta das receitas dos entes subnacionais beneficiados pelo modelo atual, dispensando compensações diretas.
Para garantir o equilíbrio federativo e a competitividade regional, foram criados quatro Fundos[1] sob responsabilidade do governo federal, destinados ao desenvolvimento, à redução de desigualdades regionais, especialmente na Amazônia, e à compensação pela extinção dos benefícios fiscais do ICMS. Embora reforcem a equalização federativa, impõem à União um ônus financeiro significativo, exigindo planejamento e gestão fiscal rigorosa.
Adicionalmente, foram estabelecidos regimes diferenciados e favorecidos como exceções ao regime geral do IBS e da CBS para setores como saúde, educação, cesta básica e agropecuária, por meio de alíquotas reduzidas e créditos presumidos. Já os regimes favorecidos beneficiam regiões e setores específicos, incluindo a Zona Franca de Manaus (ZFM), que manteve seus incentivos fiscais para esta área de livre comércio, e o Simples Nacional que preservou alíquotas reduzidas e progressivas para microempresas e empresas de pequeno porte.
Aplicação de três mecanismos inovadores
A reforma tributária brasileira traz três importantes inovações, incluindo a criação de mecanismos de implementação e coordenação do IVA Dual entre os diferentes entes federativos e de um mecanismo de recolhimento na liquidação financeira da operação (split payment), que diminui a evasão fiscal. Uma terceira inovação é a devolução parcial do IVA para combater a sua regressividade (cashback).
1ª inovação: IVA Dual com a criação de um comitê gestor
Como mencionamos anteriormente, o IVA Dual inclui dois tributos, um de competência federal e outro subnacional, a ser compartilhado entre estados e municípios.
A grande novidade da reforma tributária brasileira em comparação aos modelos de IVA Dual do Canadá e da Índia é o seu arranjo institucional. Será criado um comitê gestor com representantes dos estados e municípios para administrar o IBS, que será responsável por arrecadar este tributo sobre todas as operações e distribuir o produto da arrecadação conforme as regras de transição federativa e do local de ocorrência do fato gerador.
O Comitê Gestor representa uma enorme simplificação para os contribuintes, já que só precisarão se inscrever e recolher o tributo para uma única entidade ao invés de potencialmente para os 27 estados e 5.570 municípios. Além disso, garantirá a tomada e devolução dos créditos aos contribuintes, já que a arrecadação no meio da cadeia não será destinada aos entes federativos.
Do ponto de vista dos entes subnacionais, o Comitê Gestor terá participação paritária de representantes dos estados e dos municípios e distribuirá a arrecadação ao respectivo ente de destino. A governança compartilhada garante a autonomia aos entes subnacionais na administração do imposto, pois o governo federal não terá qualquer participação nesta entidade.
2ª inovação: recolhimento do IVA na liquidação financeira
Uma outra novidade da reforma brasileira é o modelo de split payment ou recolhimento dos tributos na liquidação financeira da operação. Tal modelo já foi implementado em alguns países da Europa e sofreu inúmeras críticas, como impacto negativo no fluxo de caixa das empresas, pois o recolhimento ocorria sem levar em consideração eventuais créditos fiscais do fornecedor. Isso significava que as empresas acumulavam créditos e teriam que esperar a sua devolução, muitas vezes demorada, gerando um custo financeiro e problemas de fluxo de caixa.
O modelo brasileiro resolveu este problema adotando um modelo de “split payment inteligente”, no qual haverá uma consulta prévia ao fisco para verificar se o fornecedor possui créditos de IBS e CBS e, assim, determinar se o split payment será realizado ou não.
Caso o contribuinte (fornecedor do bem ou serviço) tenha créditos de IBS e CBS, o split payment não será realizado pelo instrumento de pagamento, não impactando, portanto, o fluxo de caixa das empresas (Gráfica 2). Caso esta consulta não seja possível e o split payment seja realizado, a administração tributária deverá devolver o valor dos tributos ao fornecedor no prazo de 3 dias.
Gráfico 2. Como funciona o split payment

Conforme o gráfico acima baseado em um caso hipotético, o fornecedor realiza uma venda ao adquirente de $100 sobre a qual incide $26.5 de IBS e CBS (1). O adquirente então realiza o pagamento de $126.5 por meio de uma instituição de pagamento (2). Antes de realizar o split payment, a instituição de pagamento consulta o sistema para confirmar se o fornecedor tem créditos de IBS/CBS (3). Caso o fornecedor não tenha créditos de IBS/CBS suficientes para liquidar o IBS/CBS sobre a operação, a instituição de pagamento realizará o split payment, remetendo o valor dos tributos ($26.5) à Receita Federal e ao Comitê Gestor (4) e o valor do bem ($100) ao fornecedor (5). Caso tenha créditos para liquidar o débito da operação, o fornecedor receberá o pagamento do preço e do IBS/CBS ($126.5).
A implementação deste modelo é possível por causa do alto nível de digitalização da apuração e gestão do IVA. O Brasil foi um dos pioneiros mundiais na implementação da nota fiscal eletrônica, da contabilidade digital e possui sistemas avançados de pagamento instantâneo como o PIX[2]. Espera-se que o split payment reduza as fraudes com notas fiscais fraudulentas e créditos fictícios, o que permitirá uma redução do gap tributário e, por consequência, da alíquota padrão.
3ª inovação: mecanismo de devolução do IVA (ou IVA Personalizado)
O principal problema do IVA é a equidade vertical: o IVA em praticamente todas as jurisdições é comprovadamente regressivo quando medido em relação à renda. Os contribuintes de mais baixa renda pagam proporcionalmente mais imposto do que os consumidores de maiores rendas. Para mitigar esse impacto, a maioria dos países reduzem as alíquotas de certos bens e serviços de consumo massivo de modo universal, reduzindo a arrecadação e acentuando ainda mais a desigualdade, pois são os ricos que mais consomem em termos absolutos.
A reforma brasileira adotou o IVA Personalizado (IVA-P) ou Cashback para resolver este desafio. Esta solução consiste em generalizar a base tributável, adotar uma alíquota única e devolver o que foi pago de IBS e CBS a populações de baixa renda ou grupos desfavorecidos tentando maximizar a arrecadação e a neutralidade e, ao mesmo tempo, reduzir a regressividade do IVA. Em suma, o IVA P (Cashback) substitui as despesas fiscais indiscriminadas por reembolsos focalizados. As administrações tributárias podem utilizar os meios eletrônicos (por exemplo, fatura – vendedor, cartão – beneficiário, pagamento eletrônico, etc) para melhorar a focalização dos beneficiários e, simultaneamente, combater a fraude.
As famílias com renda mensal per capita de até meio salário-mínimo serão as beneficiárias do IVA-P. O Cashback corresponderá a 100% da CBS e 20% do IBS pagos na compra de botijão de gás, energia elétrica, abastecimento de água, esgoto e gás canalizado e no fornecimento de telecomunicações, e 20% para os demais bens e serviços.
Conclusão sobre a reforma do IVA no Brasil
A reforma da tributação indireta do consumo no Brasil procura resolver dois desafios concomitantes. Primeiro, busca atenuar a regressividade da tributação de uma base alargada, com taxas baixas e crédito integral para reduzir a sua complexidade. Para atingir este objetivo, elimina o “efeito cascata” e utiliza a devolução de parte do IVA aos decis de rendimento mais baixos.
Em segundo lugar, respeita a autonomia de cada ente federativo ao preservar, simultaneamente, a competência tributária de cada esfera de governo por meio da adoção do IVA Dual (CBS e IBS). Esse sistema é administrado por um comitê gestor paritário e garante uma distribuição objetiva das receitas tributárias com base na nota fiscal eletrônica.
As soluções implementadas na reforma demonstram que a adoção de boas práticas tributárias internacionais combinadas com inovações no desenho de arranjos institucionais e a utilização de tecnologias digitais tanto para a gestão tributária como para a operacionalização financeira serão aliados importantes para o aperfeiçoamento deste imposto centenário nos próximos anos.
Conheça mais sobre o trabalho do BID em gestão fiscal e o apoio do Banco para a reforma tributária.
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[1] Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional (FNDR), Fundo de Compensação de Benefícios Fiscais ou Financeiro-Fiscais, Fundo de Sustentabilidade e Diversificação Econômica do Estado do Amazonas e Fundo de Desenvolvimento Sustentável dos Estados da Amazônia Ocidental e do Amapá.
[2] PIX é um sistema de pagamento instantâneo que permite transferências e pagamentos eletrônicos em tempo real, 24 horas por dia, todos os dias do ano, sem custo para pessoas físicas. As transações são feitas por meio de chaves PIX e processadas em segundos.
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