Um ano após a publicação do decreto que formaliza a nova Estratégia Nacional de Governo Digital (ENGD), essa política vem se consolidando como um marco para a institucionalização da cultura de governo digital no Brasil. Elaborada pelo Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI) com apoio do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), a Estratégia para o período 2024-2027 enfatiza a importância de ações integradas entre os diferentes níveis de governo para que a transformação digital ocorra em rede, em todo o território nacional, mas com atenção à diversidade de contextos e necessidades locais.
A estratégia atual foi formulada a partir de um processo de cocriação que contou com a participação de mais de 90 municípios e 26 estados, além de especialistas nacionais e internacionais, representantes do setor privado e da sociedade civil. Essa construção também foi alinhada a normas e estratégias já existentes, gerando um framework normativo que contemplou diretrizes, normas e recomendações de instituições nacionais e internacionais, a exemplo da Pesquisa de Satisfação de Serviços Públicos Digitais e do Autodiagnóstico de Maturidade Digital, com o intuito de apoiar estados e municípios na estruturação de marcos regulatórios para impulsionar a transformação digital.
Desta forma, a ENGD se apresenta como um documento nacional que orienta os entes federativos no desenvolvimento ou revisão de suas próprias estratégias de transformação digital, alinhadas ao propósito comum de, por meio da inovação e do uso adequado das novas tecnologias, tornar o atendimento aos cidadãos mais inclusivo, eficaz e sustentável.

Desafios para concretizar os objetivos da ENGD
A ENGD não impõe obrigações, ela propõe objetivos estratégicos e recomendações que podem ser adaptados à realidade de cada ente subnacional, que deve identificar o caminho mais adequado para sua transformação digital.
A seguir, reunimos indicadores sobre o cenário atual de governo digital no Brasil, além de desafios e reflexões que podem orientar a implementação desta agenda:

Governança e gestão – Apenas 11 estados brasileiros têm estratégias de governo digital em vigor, e quase 72% das prefeituras não possuem planos estratégicos de TI formalizados. Um planejamento estratégico integrado é fundamental para superar desafios como ausência de normas, de orçamento planejado, de equipes de captação de recursos e de coordenação entre estados e municípios.
Cultura e capacitação – Desenvolver políticas de capacitação será importante para fazer frente ao número insuficiente de profissionais qualificados em tecnologias como Big Data e IA nos órgãos públicos e à necessidade de adaptação às novas capacidades técnicas e funções do gestor público. A cooperação entre estados e municípios também será vital para compartilhar recursos, fomentar a cultura digital e a experimentação/adoção de novas tecnologias, especialmente em cidades menores.
Prestação de serviços digitais e experiência do usuário – Há espaço para aumentar a integração e a diversidade de canais de atendimento e melhorar as avaliações da satisfação dos cidadãos com os serviços prestados. Integrar serviços físicos e digitais é uma abordagem interessante para garantir o acesso universal dos cidadãos aos serviços.
Identidade digital – Existe uma fragmentação quando se trata do acesso aos sistemas digitais em diferentes níveis de governo. No âmbito federal, já são mais de 160 milhões de contas GOV.BR, enquanto quase metade das prefeituras adotam sistemas separados de autenticação para acesso aos serviços municipais. Com relação aos estados, apenas nove atendem aos critérios de gestão de identidade digital integrada. A adoção de um login único é chave para melhorar a experiência do cidadão com os serviços públicos digitais. Para isso, é necessário harmonizar dados e acessos entre todos os entes federativos.
Segurança cibernética e privacidade de dados – Cerca de 68% dos municípios carecem de planos formais de segurança da informação e 64% não têm responsáveis pela Lei Geral de Proteção de Dados, o que enfraquece a governança em segurança, proteção de sistemas e processos de backup. Mudar esse cenário exige a implementação de regulamentações robustas, fomentando um ambiente seguro, resiliente e colaborativo para inovação e proteção de dados.
Interoperabilidade e governança de dados – O compartilhamento de dados é central para a modernização da administração pública, além de constituir um alicerce para o fomento da economia digital de dados, setor com grande potencial de impacto no desenvolvimento econômico e social. No entanto, o uso e a disponibilidade de dados abertos ainda são limitados nos diferentes níveis de governo. Instituir uma governança sólida e estratégias normativas para dados, além de plataformas comuns de interoperabilidade pode ser o impulso para mais inovação, com a participação também das empresas e da sociedade.
Aumento da eficiência pública – A transformação digital abre caminho para economias significativas a partir da redução dos custos com processos manuais e da própria redução no tempo gasto pelas pessoas para resolver suas solicitações. Além disso, também promove diminuição nos erros e aumento na transparência. Segundo o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, o Brasil economiza R$ 5 bilhões anualmente em serviços digitais. Para que haja ainda mais e melhores evidências sobre a economia gerada pela digitalização, é preciso dados padronizados e metodologias para mapeamento, gestão e revisão de processos com o uso das novas tecnologias.
Infraestrutura e arquitetura tecnológica – Segundo um levantamento realizado pelo BID, 42,8% dos usuários de serviços públicos afirmam ter acessado ao menos um serviço digital ao longo do último ano. Esse percentual, contudo, varia de forma significativa entre os segmentos populacionais. Para que toda pessoa que queira utilizar os serviços públicos digitais tenha as condições para isso, são necessários investimentos em infraestrutura tecnológica, maior conectividade e inclusão digital. A formação de consórcios regionais e federativos podem representar uma estratégia para ampliar a capacidade de investimentos, promovendo sinergias e reduzindo desigualdades no acesso a tecnologias e serviços digitais.
Inovação e governo digital – O Brasil foi considerado o segundo país mais avançado do mundo em digitalização do serviço público, mas ainda enfrenta dificuldades para escalar soluções locais entre as administrações públicas. A integração das iniciativas GovTech ainda é insuficiente, os programas de inovação aberta e de compras públicas ainda podem avançar, e as regulações sobre como a iniciativa privada pode trabalhar nos desafios da agenda pública que são de interesse comum ainda podem melhorar. A promoção de soluções escaláveis e o estímulo à economia de inovação e de dados apontam o caminho para o país avançar neste tema.
Transparência pública e participação cidadã – Quase todos os municípios do país contam com portais de transparência, mas somente 37% promovem consultas públicas online, 15% possuem fóruns ou comunidades de discussão pela internet e 25% utilizam votação online. Esse cenário traz uma oportunidade para explorar tecnologias e metodologias para maior participação da sociedade e desenvolver parcerias para ações educacionais, engajamento e para uma escuta ativa dos cidadãos de forma estruturada.
Como é possível ver, cada um dos dez objetivos da Estratégia aborda diferentes dimensões da transformação digital, mas todos formam um conjunto coerente de direcionamentos, fornecendo a base para que sua adaptação aos contextos locais ocorra de maneira colaborativa e com impacto duradouro. Desta forma, o que se constrói é um caminho compartilhado para a consolidação de um governo digital mais inclusivo e eficaz.
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