Entre as novas abordagens que vêm surgindo em diversas partes no mundo para contribuir para o aperfeiçoamento da segurança pública, destaca-se o Policiamento em Pontos Quentes (PPQ).
Trata-se de um modelo em expansão em diversas partes do mundo, e com muito potencial para o Brasil. Para testá-lo na prática, a equipe de Segurança Cidadã do Banco Interamericano de Desenvolvimento está lançando este edital que convida interessados em implementar o programa, com suporte técnico do BID, permitindo avaliar o impacto do policiamento em pontos quentes no Brasil.
Saiba mais sobre esta metodologia e veja como participar.
Primeiro, vamos falar de evidências
Para entender a importância deste edital, cabe falar de Segurança Pública Baseada em Evidências, um paradigma iniciado na década dos 1990 nos Estados Unidos e de uso ainda incipiente na América Latina e Caribe. Esse modelo tem como princípio orientador o uso do método científico para analisar problemas e possíveis soluções em segurança pública.
Na área policial, por exemplo, esta abordagem estimula que as próprias polícias liderem um trabalho conjunto com acadêmicos e outros parceiros para criar, revisar e usar as melhores evidências disponíveis para informar e estimular as políticas, práticas e decisões policiais, segundo a definição do Colégio de Polícia do Reino Unido. Policiais e acadêmicos têm se juntado para criar Sociedades de Policiamento Baseado em Evidências em vários países, como o Reino Unido, Estados Unidos, Canadá, Austrália e Nova Zelândia.
O principal objetivo deste movimento é contribuir para que o trabalho policial seja mais efetivo, mediante:
i. disseminação, em nível mundial, de conhecimentos sobre o que funciona e o que não funciona para redução da criminalidade e da violência;
ii. análise e adaptação das iniciativas mais relevantes para a realidade específica de cada organização; e
iii. avaliação dos resultados dessas iniciativas e retroalimentação para aprimorar as abordagens estratégicas, táticas e organizacionais utilizadas.
É sob esta ótica, de identificar evidências e, com base nelas, lapidar modelos, que propomos o edital de Policiamento em Pontos Quentes.
Policiamento em Pontos Quentes: o que é e como funciona?
O policiamento em pontos quentes é uma estratégia de policiamento ostensivo, realizada por meio do patrulhamento em determinadas quadras, esquinas ou praças, que concentram altas taxas de criminalidade.
A alta concentração espacial dos crimes representa uma oportunidade para agir com políticas proativas de prevenção. Estudos feitos no hemisfério norte demonstraram que 50% dos crimes ocorrem entre 2,1% a 6% dos segmentos de rua de uma cidade, (Weisburd 2015), sendo que na América Latina a concentração é ainda maior (Chainey et al 2019). A literatura especializada mostra que os microespaços que concentram de maneira tão desproporcional as ocorrências de crime têm características que atraem a atividade criminosa, como alta quantidade de vítimas potenciais, pouca vigilância natural e facilidade para a fuga.
Nesse contexto, o Policiamento em Pontos Quentes é uma estratégia que, de acordo com uma revisão de 50 estudos, gera redução de 19% nos crimes violentos, de 16% nos crimes de propriedade e de 20% nos crimes de desordem e drogas, sem gerar deslocamento do crime para outras áreas (Braga e Weisburd, 2020, p15).
A grande maioria desses estudos, porém, foi realizada no hemisfério norte e em países anglo-saxões. Na América Latina, as evidências ainda são incipientes. Enquanto estudos realizados no Uruguai e na Argentina mostram impactos positivos nos roubos (Chainey et al. 2021; Chainey et al 2022), na Colômbia, os efeitos foram mistos (Collazos et al., 2020; Blattman et al., 2021), por exemplo.
No Brasil, até o presente momento, nenhum estudo com esse foco foi produzido. Por isso, a Equipe de Segurança Cidadã do BID está promovendo parcerias com os órgãos brasileiros de segurança pública para gerar estudos que consigam responder se este tipo de programa efetivamente funciona no país, para que tipo de crimes, e sob que condições.
De fato, diversas Polícias Militares e Guardas Municipais no Brasil já levam em consideração a concentração espacial do crime no momento de planejar sua presença. A diferença com relação ao policiamento em pontos quentes é que ele supõe análise criminal e planejamento do patrulhamento muito específicos e detalhados, com um foco em segmentos de rua identificados por meio de técnicas relativamente sofisticadas. Hoje, mesmo aquelas polícias ou guardas que se destacam no Brasil no campo da análise criminal ainda não dispõem de estudos científicos que possam comprovar a efetividade de suas intervenções de policiamento em pontos quentes. Para tanto, seriam necessários estudos de alto rigor metodológico.
Como saber se uma intervenção funciona, do ponto de vista científico?
Os Experimentos Randomizados Controlados (ERCs) são a metodologia considerada “padrão ouro” quando o objetivo da pesquisa é estabelecer relações de causalidade, isto é, saber se uma intervenção é ou não a causa de um impacto específico.
Os ERCs permitem comparar dois grupos com as mesmas características, sendo que em um a intervenção é a aplicada, e no outro não – o chamado “grupo de controle”. Com isso, pode-se observar o que teria ocorrido caso o programa não tivesse sido aplicado. A escolha randomizada sobre quais unidades receberão o programa e quais farão parte do grupo de controle é o que garante a semelhança entre os dois grupos e permite, assim, produzir evidência de alta qualidade. Este é o método utilizado, por exemplo, para saber se as vacinas desenvolvidas para a COVID são eficazes e seguras.
Como participar do edital de Policiamento de Pontos Quentes?
Organizado pelo BID, o objetivo deste Edital é identificar Polícias Militares e Guardas Municipais que tenham interesse em adaptar e testar estratégias de policiamento em pontos quentes (PPQ) no Brasil, gerando cases que possam proporcionar evidências empíricas sobre a efetividade desse modelo no contexto brasileiro, bem como referências para o país e para a América Latina em geral.
As características e os parâmetros do edital podem ser encontrados abaixo:
- Quem pode participar
- As Polícias Militares (PMs) das 27 entidades federativas e as Guardas Municipais (GMs) de cidades acima de 100 mil habitantes.
- Os participantes devem contar com uma base de dados georreferenciados (no nível de rua) sobre roubos a pedestres, roubos em transporte público, roubos a comércios e outros tipos de roubos com uma série histórica de, no mínimo, 3 anos (2019-2021).
- Manifestação de interesse
- As PMs e GMs que tenham interesse em participar devem enviar ao BID uma carta da parte do Comandante Geral da PM ou do Diretor da GM. Esta carta não significa um comprometimento com a implementação prática do programa, mas somente uma manifestação de interesse em receber apoio técnico do BID na elaboração da proposta.
- A carta deve ser enviada para rodrigose@iadb.org com as seguintes informações:
- Nome completo do ponto focal para o diálogo técnico:
- Cargo:
- Email:
- Telefone de contato:
- Confirmação da disponibilidade de dados georreferenciados de roubos para 2019-2021
- Apoio para desenvolvimento das propostas:
- O BID disponibilizará apoio técnico a todos os interessados em desenhar uma intervenção de PPQ e uma proposta de ERC. Esse apoio técnico envolverá reuniões em grupo e individuais para identificar as características locais e as possibilidades de implementação do ERC, conforme a qualidade dos dados disponíveis. Para dar esse apoio temos feito uma parceria com a Profa. Joana Monteiro, Coordenadora do Centro de Ciência Aplicada à Segurança Pública na Fundação Getulio Vargas (FGV), e o Prof. Spencer Chainey, do Instituto de Seguranca e Ciencias do Crime da Universidade do Colegio de Londres (UCL).
- Para o desenho da intervenção de PPQ, estará disponível a utilização gratuita de um algoritmo desenvolvido pelo Insight Data Science Lab da Universidade Federal do Ceará que calcula automaticamente os principais pontos quentes na cidade e permite desenhar as rotas de patrulhamento mais efetivas, podendo a instituição partícipe utilizar outras ferramentas de análise de dados que disponha. Não vai ser preciso compartilhar dados para o uso do algoritmo.
- Para auxiliar no desenho, implementação e avaliação, o BID desenvolveu um manual que detalha passo-a-passo a metodologia de policiamento em pontos quentes, o qual será disponibilizado para os governos que manifestarem interesse.
- Seleção:
- Um comitê formado por funcionários do BID, policiais do Brasil com ampla experiência e especialistas nacionais e internacionais fará a avaliação e ranking das propostas de ERC. Haverá um ranking para as PMs e outro para as GMs.
- Todas as propostas que preencham os requisitos mínimos terão apoio do BID para sua implementação.
- Os critérios de avaliação da qualidade incluirão:
- Aderência aos termos especificados neste Edital.
- Qualidade metodológica da proposta (desenho do ERC).
- Qualidade da proposta para gerenciar a implementação e avaliação do programa, incluindo fontes dos recursos disponíveis, apoio institucional, razoabilidade dos cronogramas, quantidade e qualificação dos participantes.
- Contribuição para melhorar a base de evidências sobre policiamento de pontos quentes em temas como estes:
Alguns assuntos que precisamos entender melhor sobre PPQ:
- Dosagem: qual o tempo de permanência em cada ponto quente produz o maior efeito de dissuasão após a passagem dos policiais? Nos Estados Unidos esse tempo é entre 11 e 14 minutos, o qual gera um efeito residual entre 1h e 1h30.
- Forma de patrulhamento: qual a melhor forma de realizar o patrulhamento (a pé/bicicleta/viatura, etc.)?
- Comportamento policial: a forma em que os policiais agem quando estão no ponto quente, na forma de fazer abordagens ou contatos comunitários, faz diferença?
- Agir sobre as causas: implementar PPQ junto com o policiamento orientado por problemas, com o objetivo de entender e agir sobre as causas pelas quais certos locais são pontos quentes, faz diferença no resultado?
- Deslocamento do crime e difusão de benefícios: existe um deslocamento do crime para áreas onde não está sendo feito o PPQ? Existe uma difusão de benefícios (redução em outros crimes na mesma área, ou do mesmo crime nas áreas conexas ao local de intervenção?).
- Apoio técnico para a implementação dos projetos aprovados:
- Apoio técnico: o BID fornecerá capacitação e assistência técnica durante a implantação do programa e do estudo. Isso envolve capacitação dos policiais da ponta sobre como fazer o patrulhamento em pontos quentes, como conduzir as interações com os cidadãos, o que observar e o que fazer nos pontos quentes; para os policiais supervisores, como monitorar os policiais da ponta, e para os analistas como produzir análise criminal e avaliações de impacto.
- Incentivo: o BID também financiará entre duas e quatro vagas por PM, GM ou Secretaria de Segurança Pública para o curso on-line do Centro de Policiamento Baseado em Evidências, coordenado pelo Professor Lawrence Sherman do Cambridge Center for Evidence Based Policing, no Reino Unido. O curso e oferecido em inglês e está se explorando a possibilidade de ter interpretação para português.
- Demanda de efetivo: a quantidade de policiais que se estima ser necessária para participar vai depender da quantidade de pontos quentes selecionados para o programa e da disponibilidade de efetivos na cidade.
- Duração: espera-se que todo o processo leve 12 meses, sendo: 3 meses para o desenho do programa e do estudo; 6 meses para implantar o programa, e 3 meses para processar e escrever os resultados.
- Difusão: o BID realizará diversas atividades para apresentar os resultados, por meio de publicações de artigos em jornais científicos, produção de vídeos e artigos de divulgação na Plataforma de Evidência em Segurança e Justiça, entre outros.
No futuro, haverá editais orientados as Polícias Civis, e outros corpos de segurança no Brasil, mas este já é um importante passo rumo à incorporação de novas metodologias que contribuam para a segurança pública, com base em evidências.
No momento em que polícias e guardas no Brasil estão cada vez mais se profissionalizando e se orientando por resultados, contar com o interesse e o engajamento desses profissionais é imprescindível para o aperfeiçoamento da segurança pública brasileira.
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