Seu Raimundo é pequeno agricultor, do tipo que madruga todo dia para cuidar da horta contígua ao terreno da casa humilde onde mora. Os três filhos ajudam o pai quando podem porque enfrentam sempre um longo trajeto até a escola, incentivados pela mãe, que sonha com um futuro menos incerto. Dona Francisca é guerreira, faz milagres para nutrir a família com a média de 20 litros de água por cabeça recebidos a cada dia da Operação Carro-Pipa (OCP).
Em bons tempos climáticos, a família garante sua subsistência. Quando a natureza não ajuda, a situação se complica e a fome ameaça. A água que recebem da OCP não é suficiente para regas ou banhos. Higiene pessoal vira algo dispensável quando o rio seca.
Apesar de tanta luta, Seu Raimundo agradece. Até hoje não precisou abandonar sua casa e deixar a região onde a família vive há gerações. Nos tempos de seu pai, a situação era bem pior, quando andavam quilômetros para buscar água nas costas de um burrico e faziam de conta que era potável. A OCP pelo menos garante ao povoado onde moram o suficiente para beber e cozinhar.
Essa é a realidade de muitos Raimundos, Franciscas, Marias e Josés do sertão nordestino. Garantem a sobrevivência com o mínimo de água, em condições básicas de qualidade. Poderia ser pior. Pode ser bem melhor.
O desafio de garantir água à população do semiárido está longe de ter uma solução rápida e fácil. Aliás, não tem uma única solução. Caracteriza-se como um problema complexo, com múltiplas variáveis, que envolve atores diversificados e com interesses eventualmente até antagônicos. Cada solução possível depende de um esforço integrado entre governo federal, governo estadual, prefeitura e a própria comunidade, além de associações ou até da iniciativa privada.
Frente a esse grande desafio, o Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) aproveitou uma oportunidade de obter o apoio do Laboratório de Inovação e Coparticipação do Tribunal de Contas da União (TCU/coLAB-i) e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), com apoio do Grupo Tellus. Essa parceria surgiu no escopo do projeto INOVAMOS, que se propôs a desenhar um modelo de apoio às compras públicas de inovação aproximando órgãos de controle de gestores públicos.
O MDR apresentou o desafio inicial de melhorar a OCP, a fim de reduzir os custos da água fornecida, além de melhorar a sua qualidade e a regularidade do fornecimento. A necessidade desse aperfeiçoamento era inquestionável, e ainda é, mas o desafio proposto mantinha a abordagem de gestão de desastre que, na visão do próprio MDR, precisava evoluir para uma melhor política de segurança hídrica.

O papel do coLAB-i, do BID e do Tellus foi ampliar a análise para esse contexto da água no semiárido nordestino considerando as peculiaridades de um problema complexo e que demanda inovação social, ou seja, múltiplas soluções que atendam necessidades de um grupo de pessoas, com foco no seu desenvolvimento humano, e que implica novas relações de engajamento. Por meio da metodologia de design thinking, foi possível redefinir o desafio inicial e orientar as propostas segundo uma abordagem de inovação aberta, que depende de um processo colaborativo entre atores diversificados.
O desafio redefinido passou a ser: “como podemos promover a distribuição de água potável com qualidade e quantidade suficientes para a população do semiárido rural, atualmente dependente de forma continuada da Operação Carro-Pipa do Governo Federal, utilizando práticas com o melhor custo-benefício?”. Frente a esse novo desafio, foram mapeadas as dores do próprio MDR, bem como os vários atores direta ou indiretamente relacionados ao contexto e às possíveis soluções. A partir do levantamento de dados e de outras ferramentas que permitiram identificar hipóteses, certezas e dúvidas nesse cenário, chegou-se a uma nova visão do projeto.

Ao longo desse processo o MDR se propôs a escutar vários dos atores mapeados, não só para conhecer iniciativas que se voltavam para a mesma problemática, mas também para identificar parceiros e caminhos alternativos para contratar soluções ou até para obter recursos. Uma das conversas intermediadas pelo BID foi com a empresa pública Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP), que assumiu desde então o papel de principal apoiadora do MDR nesse processo de inovação aberta, também com aplicação do design thinking. Outro encontro essencial foi com auditores do TCU, que reforçaram o incentivo à inovação na administração pública e destacaram a importância do tempo e esforço dedicados ao mapeamento do contexto, levantando e integrando dados sobre as necessidades da população, o histórico, a infraestrutura existente e as iniciativas nas diferentes esferas de governo, considerando riscos e possibilidades.
O MDR segue nesse movimento de compreender o cenário e focar na cocriação de soluções frente ao desafio de levar água ao semiárido. O debate vem sendo ampliado dada a relevância e a complexidade desse problema público. Afinal, são mais de 2 milhões de pessoas atendidas com uma política emergencial que existe há mais de 20 anos.
O cenário de restrição orçamentária demanda soluções ainda mais criativas para viabilizar políticas públicas com foco no resultado. O aprendizado ao longo dos últimos meses tem sido intenso e transformador no sentido de agregar atores e trazer parcerias privadas. Mais ciente do potencial da inovação aberta, o MDR vem buscando alternativas para continuar apoiando projetos de soluções e captar financiadores mediante parcerias com atores externos.
“O problema é diversificado e demanda um cardápio de soluções. Estávamos olhando muito para o desafio tecnológico, mas a questão de governança é ainda mais complexa. É necessário buscar alternativas mais permanentes de abastecimento de água e considerar que cada uma delas traz impacto em outras políticas sociais. Mais água gera mais resíduos, então precisamos pensar de maneira integrada.” Para Alice Carvalho, Assessora Especial no MDR, além dessas questões, é preciso considerar a importância da pactuação comunitária e do engajamento de diversos agentes: “muitas vezes as pessoas estão tão imersas no problema que não enxergam que pode ser diferente”. Magno Costa, Coordenador de Restabelecimento de Serviços Essenciais, esclarece que as iniciativas de maior sucesso contam com a organização da própria comunidade, que precisa ser orientada e capacitada para manter o sistema implantado.

Projetos dessa magnitude ensinam que inovar não é simples, envolve riscos e ainda não faz parte da cultura na administração pública. Na visão de Diego Link, Assessor Especial do MDR, “as áreas e equipes estão acostumadas com processos mais definidos, burocráticos e estáveis. O gestor é demandado a encontrar soluções rápidas, mas a cultura de inovação requer tempo e experiência das pessoas envolvidas”. De fato, a produção de resultados duradouros e relevantes requer construção colaborativa e compreensão do contexto da população alvo. “Ter a perspectiva do usuário não é só mapear dados, mas ouvir”, acrescenta Diego.
Conhecer de perto a realidade do Seu Raimundo, da Dona Francisca, dos muitos Josés e Marias é requisito para que o desafio da água no semiárido brasileiro seja superado. Envolver-se nesse processo de inovação aberta requer que se renuncie aos pressupostos para se expor a novas perspectivas e ideias. Inovar no governo é consequência de se assumir como agente público no papel de trabalhar em favor da sociedade, comprometido com a mudança. É não sossegar até que saia água da torneira do Seu Raimundo, até que a Dona Francisca possa cobrar o banho diário de seus filhos.

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